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quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Anulam a palavra de Deus para apegar-se à tradição-Claretianos

Domingo, 30 de Agosto de 2015

Tema: Vigésimo Segundo Domingo do Tempo Comum

Deuteronômio 4,1-2.6-8: Não acrescentem nada ao que vos mando
Salmo 14: Senhor, quem pode hospedar-se em vossa casa?
Tiago 1,17-18.21b-22.27: Levem a palavra à prática
Marcos 7,1-8.14-15.21-23: Anulam a palavra de Deus para apegar-se à tradição
1Os fariseus e alguns dos escribas vindos de Jerusalém tinham se reunido em torno dele.2E perceberam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.3(Com efeito, os fariseus e todos os judeus, apegando-se à tradição dos antigos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos;4e, quando voltam do mercado, não comem sem ter feito abluções. E há muitos outros costumes que observam por tradição, como lavar os copos, os jarros e os pratos de metal.)5Os fariseus e os escribas perguntaram-lhe: Por que não andam os teus discípulos conforme a tradição dos antigos, mas comem o pão com as mãos impuras?6Jesus disse-lhes: Isaías com muita razão profetizou de vós, hipócritas, quando escreveu: Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim.7Em vão, pois, me cultuam, porque ensinam doutrinas e preceitos humanos (29,13).8Deixando o mandamento de Deus, vos apegais à tradição dos homens.14Tendo chamado de novo a turba, dizia-lhes: Ouvi-me todos, e entendei.15Nada há fora do homem que, entrando nele, o possa manchar; mas o que sai do homem, isso é que mancha o homem. 21Porque é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos,22adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez.23Todos estes vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem.

Comentário


É antiga a tentação de considerar que o essencial de uma religião está no cumprimento de formalidades rituais e não no compromisso com seus princípios vitais. Também esta tentação acompanhou o “povo de Deus” de Israel – como a muitos outros “povos de Deus”, - desde tempos imemoriais. Hoje, se alguma pessoa se atreve a questionar, ainda que seja indiretamente, certos acontecimentos históricos e a propor alternativas coerentes com o evangelho, em pouco tempo é tachada de “desviar-se da autêntica doutrina”. Contudo, como lembra o Salmo, não são os muitos ornamentos nem o volume das celebrações o que nos eleva a Deus, mas a justiça, a honestidade, a reta intenção e o respeito. Anunciar a justiça e vive-la no dia a dia constitui a exigência fundamental das Escrituras judaico-cristãs e nisto coincidem com tantas outras escrituras sagradas. Os rituais, as prescrições, as cerimônias… podem ajudar a nos manter no caminho de Deus, porém não pode substituí-lo. Por esta razão, a exortação dirigida por Moisés a seu povo se centra na necessidade do povo de Deus de tornar uma clara opção pelo Deus da liberdade e da justiça que os tirou do Egito. Do contrário, o sonho da “terra prometida” pode se converter em um cruel pesadelo. Os primeiros cristãos experimentam na própria carne a ameaça do formalismo e do ritualismo. Depois de um tempo de dedicação e fervor pela missão, os ânimos começaram a ceder e a comunidade se viu rapidamente atraída pelas relações puramente funcionais e formais. Deste modo se perdia a fraternidade que lhes dava identidade e coerência.

A carta de Tiago nos coloca em alerta contra uma religião que não encarne os valores do Evangelho. A palavra escutada na Sagrada Escritura deve ser discernida segundo o Espírito para vive-la docilmente na vida cotidiana. O cristianismo não é uma formalidade social a ser cumprida, nem um ritual a mais nas práticas piedosas de uma cultura. O cristianismo se manifesta como uma opção vital que requer o compromisso íntegro da pessoa. A comunidade de fieis é o espaço ideal para que a pessoa realize sua opção e viva, em companhia de outros irmãos e irmãs, o chamado de Jesus.

O livro do Deuteronômio, que Jesus segue muito de perto, propõe como religião uma série de princípios éticos orientados a criar laços de solidariedade, equidade e justiça; contudo, o judaísmo do primeiro século estava mais inclinado a valorizar as formalidades. Lavar as mãos antes de ingerir alimentos havia passado, de norma elementar de higiene, a uma norma que decidia quem era religioso e quem era um pecador. A tentação de canonizar os objetos, os rituais, os espaços e o tempo podem fazer esquecer à pessoa piedosa que a essência de sua relação com Deus não está nos protocolos culturais, mas no respeito, na compaixão e na misericórdia.

Jesus nos convida a redescobrir a essência do cristianismo em nossa opção por construir a utopia de Deus, o que ele chama em aramaico “Malkuta Javé”, Reino de Deus, e por viver de acordo com os princípios do evangelho. Todas as nossas normas e protocolos estão a serviço de uma autêntica vivência de seus ensinamentos. Nós não devemos renunciar a uma vida autêntica e criativa para seguir Jesus. Antes o contrário, devemos recriar aqui e agora toda a novidade de sua profecia e toda a radicalidade de seu amor incondicional pelos excluídos. Conectado com todo este tema está aquele outro da “letra e do espírito”: a letra é o detalhe do mandamento, da prescrição, do rito, da ação concreta, da “verdade superficial” (Niels Bohr)… O espírito é o sentido com o qual foi concebida aquela prática concreta e a vivência com a qual deve ser vivida, a “verdade profunda” (Bohr). Por isso se diz que a letra (a letra sem espírito, a verdade superficial) mata, enquanto que o espírito vivifica. A letra é meio, enquanto que o espírito é um fim. Este pode dar-se sem aquela, à margem ou inclusive “contra” ela: com efeito, há ocasiões em que, em circunstâncias muito especiais, o espírito de uma lei ou de uma prática ritual pode exigir a ação naquela situação, “precisamente o contrário” do que a letra prescreve. Essa flexibilidade, essa “liberdade de espírito” é uma exigência de todos os cristãos, como de todo ser humano adulto e maduro.

Outro problema, que não podemos abordar aqui, mas que seria bom não deixar de mantê-lo dentro do horizonte, é que a religiosidade atual está se transformando. Por sua própria natureza, as “religiões” (chamamos assim aqui, tecnicamente, a “forma como o ser humano assumiu a espiritualidade a partir de sua sedentarização neolítica”, a partir da revolução agrária, faz somente uns milhares de anos, porque antes havia espiritualidade, porém não havia “religiões”), aos poucos formaram os ritos, daí as práticas rituais, depois descrições minuciosas, sem dúvida, um meio importantíssimo de expressão e ao mesmo tempo um meio de controle social. A religião, nas sociedades agrárias, foi o melhor e mais potente veículo de identidade da sociedade e de controle por parte do poder, e os ritos sua expressão mais visível.

Hoje estamos chegando precisamente ao fim da idade agrária (do neolítico), depois da revolução industrial e tecnológica, a mundialização plural e a progressiva vinda da sociedade do conhecimento. As “religiões agrárias”, naquele sentido técnico preciso, já não existem mais. (A espiritualidade, a religiosidade profunda, vai muito mais além de sua concretização nas diferentes “religiões”). O ser humano pós-agrário já não pode aceitar sua identidade nem pode aceitar um controle pelos veículos “regionais” baseados em “crenças” (em sentido também técnico). Obviamente, o certo é que a espiritualidade do ser humano vai continuar. Porém, as chamadas “religiões agrárias”, estão morrendo e tendem a desaparecer, e é bom que desapareçam porque a humanidade está em outra etapa de sua história. Os ritos, as práticas religiosas prescritas… são, por isso, em algumas sociedades atuais avançadas, realidades “residuais”, que desaparecem vertiginosamente. Se a Igreja não aceita enfrentar sem medo estes desafios, a única coisa a fazer é atrasar o reconhecimento de uma enfermidade que vai corroendo suas entranhas, como os milhões de fiéis que silenciosamente vão se auto exilando a cada ano, não somente nas sociedades chamadas “avançadas”, mas também já na América Latina. Foi no ano de 2008 que começamos a conhecer essas “apostasias” voluntárias de cristãos em alguns países da América Latina, um fenômeno absolutamente novo em sua história, porém significativo e crescente no momento atual da história globalizada do mundo.

Oração


Ó Deus, nosso Pai, de quem procedo todo bem e cujo Espírito nos chama à liberdade, nós te pedimos que as normas, leis, ritos e temores… que muitas vezes interpomos em nossa relação contigo, não cheguem a ocultar teu rosto de amor, de tal forma que, longe de nos apegar a tradições simplesmente humanas, estejamos livres para encontrar criativamente vias sempre novas de chegar a ti e de contemplar teu rosto.


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