VÁRIA HOMILIAS PARA QUARTA-FEIRA DE CINZAS
FONTE: SITE DO PADRE FÉLIX
O
sentido do jejum e da oração
1. Hoje,
quarta-feira de cinzas, a liturgia dirige a todos os fiéis um intenso convite à
conversão com as palavras do apóstolo Paulo: «Em nome de Cristo vos suplicamos:
reconciliai-vos com Deus!» (2 Coríntios 5,20). A Quaresma é o tempo
espiritualmente mais propício para acolher esta exortação, pois é tempo mais
intenso de oração, de penitência e de maior atenção aos irmãos necessitados.
Com o rito de hoje da imposição das cinzas, reconhecemo-nos pecadores,
invocamos o perdão de Deus, manifestando um sincero desejo de conversão.
Começamos assim um austero caminho ascético, que nos levará ao tríduo pascal,
coração do ano litúrgico.
2. Segundo a
antiga tradição da Igreja, todos os fiéis são obrigados no dia de hoje a
abster-se de comer carne e a observar o jejum, com exceção daqueles que tenham
impedimentos por motivos de saúde ou idade. O jejum tem um grande valor na vida
dos cristãos, é uma exigência do espírito para relacionar-se melhor com Deus.
De fato, os aspectos exteriores do jejum, ainda que sejam importantes, não
explicam totalmente esta prática. A eles se une um sincero desejo de
purificação interior, de disponibilidade para obedecer à vontade divina e de
afetuosa solidariedade com os irmãos, em particular os mais pobres.
Existe,
ademais, uma profunda relação entre o jejum e a oração. Rezar é colocar-se à
escuta de Deus e o jejum favorece esta abertura do coração.
3. Enquanto
entramos no tempo da Quaresma, não podemos deixar de ter em conta o atual
contexto internacional, no que agitam ameaçadores tensões de guerra. É
necessário por parte de todos uma consciente tomada de responsabilidades e um
esforço comum para evitar à humanidade outro dramático conflito. Por este
motivo, quis que esta Quarta-feira de Cinzas fosse uma Jornada de oração e de
jejum para implorar a paz no mundo. Antes de tudo, temos que pedir a Deus a
conversão do coração, no que se arraiga toda forma de mal e todo impulso ao
pecado; temos que rezar e jejuar pela pacífica convivência entre os povos e as
nações.
Ao início de
nosso encontro temos escutado as encorajadores palavras do Profeta: «Não
levantará espada nação contra nação, nem se exercitarão mais na guerra» (Isaias
2,4). E acrescenta: «Forjarão de suas espadas enxadas e de suas lanças, foices»
(ibidem). Por cima dos grandes acontecimentos da história está a soberana
presença de Deus, que julga as decisões dos homens. Dirigimos nosso coração a
Ele, «juiz entre os povos» e «árbitro de povos numerosos» (Cf. ibidem), para
pedir um futuro de justiça e de paz para todos. Este pensamento deve estimular
a cada um de nós a continuar em uma incessante oração e em um concreto
compromisso por construir um mundo no qual o egoísmo dê lugar à solidariedade e
ao amor.
4. Quis
voltar a traçar também o convite urgente à conversão, à penitência e a solidariedade
na Mensagem para a Quaresma, publicada há alguns dias, e que tem por tema a
bela frase tomada dos Atos dos Apóstolos «Há maior felicidade em dar que em
receber» (20,35).
Vendo-o bem,
só se nos convertermos a esta lógica podemos construir uma ordem social que não
está caracterizado por um precário equilíbrio de interesses em conflito, se não
em uma justa e solidária busca do bem comum. Os cristãos, como fermento, são
chamados a viver e a difundir um estilo de gratuidade em todo âmbito da vida, promovendo
deste modo o autêntico desenvolvimento moral e civil da sociedade. Escrevi
neste sentido: «Privar-se não somente do supérfluo, mas também de algo mais,
para distribuí-lo a quem vive em necessidade, contribui à negação de si mesmo,
sem a qual não há autêntica prática de vida cristã» (Mensagem para a Quaresma
2003,4)
5. Que esta
Jornada de oração e de jejum pela paz, com a que começamos a Quaresma, se
traduza em gestos concretos de reconciliação. Desde o âmbito familiar até o
internacional, que cada um se sinta e se faça responsável da construção da paz.
E o Deus da paz, que conhece as intenções dos corações e chama a seus filhos
promotores da paz (Mateus 5,9), não deixará de oferecer sua recompensa (Cf.
Mateus 6,4.6.18).
Confiamos
estes favores à intercessão da Virgem Maria, Rainha do Rosário e Mãe da Paz.
Que nos leve pela mão e nos acompanhe durante os próximos quarenta dias, até a
Páscoa para contemplar ao Senhor Ressuscitado.
Desejo a
todos uma boa e frutífera Quaresma!
João
Paulo II
1.
"Rasgai o coração, e não as vestes! Voltai para Javé, vosso Deus, pois Ele
é piedade e compaixão!" (Jl. 2,13).
É
com estas palavras do profeta Joel, que a liturgia de hoje nos introduz na
quaresma, indicando-nos na conversão do coração a dimensão fundamental do
singular tempo de graça, que nos preparamos para viver. Além disso, ela
sugere-nos a motivação profunda que nos torna capazes de voltar a percorrer o caminho
rumo a Deus: trata-se da reencontrada consciência de que o Senhor é
misericordioso e que cada homem é seu filho muito amado, chamado à conversão.
Com
uma grande riqueza de símbolos, o texto profético agora proclamado recorda que
o compromisso espiritual deve ser traduzido em opções e em gestos concretos;
que a conversão autêntica não deve reduzir-se a formas exteriores ou a
propósitos indefinidos, mas exige o empenhamento e a transformação de toda a
existência.
A
exortação "Voltai para Javé, vosso Deus" implica o desapego daquilo
que nos mantém distantes dele. Este desapego constitui o ponto de partida
necessário para restabelecer com Deus a aliança que foi interrompida por causa
do pecado.
2.
"Em nome de Cristo, suplicamo-vos: reconciliai-vos com Deus" (2
Cor. 5,20). O premente convite à reconciliação com Deus está presente também no
trecho da segunda carta aos Coríntios, que acabamos de ouvir.
A
referência a Cristo, colocada no centro de toda a argumentação, sugere que nele
é oferecida ao pecador a possibilidade de uma reconciliação autêntica. Com
efeito, "Aquele que nada tinha a ver com o pecado, Deus fê-lo pecado por
causa de nós, a fim de que por meio dele fôssemos reabilitados por Deus"
(2 Cor. 5,21). Somente Cristo pode transformar a situação de pecado em situação
de graça. Só Ele pode transformar em "momento favorável" os tempos de
uma humanidade mergulhada e arrebatada pelo pecado, angustiada pelas divisões e
pelo ódio. "Cristo é a nossa paz. De dois povos, Ele fez um só. na sua
carne derrubou o muro da separação: o ódio... Quis reconciliá-los com
Deus num só corpo, por meio da cruz" (Ef. 2,14.16 a).
Este
é o momento favorável! Um momento oferecido também a nós, que hoje empreendemos
com espírito penitente o austero caminho quaresmal.
3.
"Voltai para mim de todo o coração, com jejuns, lágrimas e
lamentações" (Jl. 2,12).
Através
dos lábios do profeta Joel, a Liturgia da Quarta-Feira de Cinzas exorta à
conversão os idosos, as mulheres e os homens adultos, os jovens e as crianças.
Todos nós devemos pedir perdão ao Senhor, por nós mesmos e pelos outros (cf.
ibid., 2,16 - 17).
Caríssimos
Irmãos e Irmãs, seguindo a tradição das estações quaresmais, hoje estamos
reunidos aqui na antiga Basílica de Santa Sabina, para responder a este
premente apelo. Também nós, assim como os contemporâneos do profeta, temos
diante dos nossos olhos, e trazemos impressos na nossa alma, imagens de grandes
sofrimentos e tragédias, não raro fruto do egoísmo irresponsável. Também nós
sentimos o peso da confusão de muitos homens e mulheres, diante da dor dos
inocentes e das contradições da humanidade hodierna. Temos necessidade da ajuda
do Senhor, para recuperarmos a confiança e a alegria da vida. Devemos voltar
para Aquele que hoje nos abre a porta do seu coração, rico de bondade e de
misericórdia.
4.
No centro da atenção desta celebração litúrgica há um gesto simbólico,
oportunamente explicado pelas palavras que o acompanham. É a imposição das
cinzas, cujo significado, fortemente evocativo da condição humana, é salientado
pela primeira fórmula contemplada pelo rito: "Recorda-te que tu és
pó, e ao pó voltarás" (Gn. 3,19). Estas palavras, tiradas do Livro do Gênesis,
lembram a caducidade da existência e convidam a considerar a vaidade de cada
projeto terrestre, quando o homem não fundamenta a sua esperança no Senhor. A
segunda fórmula, prevista pelo rito: "Convertei-vos e acreditai no
Evangelho" (Mc. 1,15), sublinha qual é a condição indispensável para
percorrer o caminho da vida cristã: ou seja, são necessárias uma concreta
transformação interior e adesão à palavra de Cristo.
Portanto,
a liturgia de hoje pode considerar-se, de certa forma, como uma "liturgia
de morte", que remete para a sexta-feira santa, onde o rito deste dia
encontra o seu pleno cumprimento. Com efeito, é naquele que "se humilhou a
si mesmo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz!" (Fl. 2,8),
que também nós devemos morrer para nós mesmos, a fim de renascermos para a vida
eterna.
5.
Escutemos o convite que o Senhor nos dirige através dos gestos e das palavras,
intensas e austeras, da liturgia desta quarta-feira de cinzas! Aceitemo-lo com
a atitude humilde e confiante, que nos propõe o salmista: "Pequei contra
ti, somente contra ti, praticando o que é mau aos teus olhos". E depois:
"Ó Deus, cria em mim um coração puro e renova no meu peito um espírito
firme..." (Sl. 51,6.12).
O
tempo quaresmal constitua para todos uma renovada experiência de conversão e de
profunda reconciliação com Deus, conosco mesmos e com os irmãos. Oxalá a
possamos obter através da Virgem das Dores que, ao longo do caminho quaresmal,
contemplamos associada ao sofrimento e à paixão redentora do Filho.
João
Paulo II
13
de fevereiro de 2002
Conversão
e penitência
I. COMEÇA A
QUARESMA, tempo de penitência e de renovação interior para prepararmos a Páscoa
do Senhor1. A liturgia da Igreja convida-nos com insistência a purificar a
nossa alma e a recomeçar novamente.
Diz o Senhor
Todo-Poderoso: Convertei-vos a mim de todo o vosso coração, com jejum, lágrimas
e gemidos de luto. Rasgai os vossos corações, não as vossas vestes;
convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque ele é compassivo e
misericordioso...2, lemos na primeira leitura da Missa de hoje. E quando o
sacerdote impuser as cinzas sobre as nossas cabeças, recordar-nos-á as palavras
do Gênesis, depois do pecado original: “Memento homo, quia pulvis es...”
Lembra-te, ó homem, de que és pó e em pó te hás de tornar3.
“Memento
homo...” Lembra-te... E, não obstante, às vezes esquecemos que sem o Senhor não
somos nada. “Sem Deus, nada resta da grandeza do homem senão este montinho de
pó sobre um prato, numa ponta do altar, nesta Quarta-feira de Cinzas, com o
qual a Igreja nos deposita na testa como que a nossa própria substância”4.
O Senhor
quer que nos desapeguemos das coisas da terra para que possamos dirigir-nos a
Ele, e que nos afastemos do pecado, que envelhece e mata, e retornemos à fonte
da Vida e da alegria: “O próprio Jesus Cristo é a graça mais sublime de toda a
Quaresma. É Ele quem se apresenta diante de nós na simplicidade admirável do
Evangelho”5.
Dirigir o
coração a Deus, converter-se, significa estarmos dispostos a empregar todos os
meios para viver como Ele espera que vivamos, a não tentar servir a dois
senhores6, a afastar da vida qualquer pecado deliberado. Jesus procura em nós
um coração contrito, conhecedor das suas faltas e pecados e disposto a
eliminá-los. Então lembrar-vos-eis do vosso proceder perverso e dos vossos dias
que não foram bons...7. O Senhor deseja uma dor sincera dos pecados, que se
manifestará antes de mais nada na Confissão sacramental: “Converter-se quer
dizer para nós procurar novamente o perdão e a força de Deus no sacramento da
reconciliação e assim recomeçar sempre, avançar diariamente”8.
Para
fomentar em nós a contrição, a liturgia de hoje propõe-nos o salmo com que o
rei David manifestou o seu arrependimento, o mesmo com que tantos santos
suplicaram o perdão de Deus. Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa bondade.
E, segundo a imensidão da vossa misericórdia, apagai a minha iniqüidade,
dizemos a Jesus com o profeta real.
Lavai-me
totalmente da minha falta e purificai-me do meu pecado. Eu reconheço a minha
iniqüidade e tenho sempre diante de mim o meu pecado. Somente contra Vós
pequei.
Ó meu Deus,
criai em mim um coração puro e renovai-me o espírito de firmeza. Não me expulseis
para longe do vosso rosto, não me priveis do vosso santo espírito.
Restituí-me
a alegria da salvação e sustentai-me com uma vontade generosa. Senhor, abri os
meus lábios a fim de que a minha boca anuncie os vossos louvores9.
O Senhor nos
atenderá se no dia de hoje repetirmos de todo o coração, como uma jaculatória:Ó
meu Deus, criai em mim um coração puro e renovai-me o espírito de firmeza.
II. O SENHOR
também nos pede hoje um sacrifício um pouco especial: a abstinência e, além
dela, o jejum, pois o jejum “fortifica o espírito, mortificando a carne e a sua
sensualidade; eleva a alma a Deus; abate a concupiscência, dando forças para
vencer e amortecer as suas paixões, e prepara o coração para que não procure
outra coisa senão agradar a Deus em tudo”10.
Além destas
manifestações de penitência (a abstinência de carne a partir dos 14 anos e o
jejum entre os 18 e os 59 completos), que nos aproximam do Senhor e dão à alma
uma alegria especial, a Igreja pede-nos também que pratiquemos a esmola que,
oferecida com um coração misericordioso, deseja levar um pouco de consolo aos
que passam por privações ou contribuir conforme as possibilidades de cada um
para uma obra apostólica em bem das almas. “Todos os cristãos podem praticar a
esmola, não só os ricos e abastados, mas mesmo os de posição média e ainda os
pobres; deste modo, embora sejam desiguais pela sua capacidade de dar esmola,
são semelhantes no amor e afeto com que a praticam”11.
O
desprendimento das coisas materiais, a mortificação e a abstinência purificam os
nossos pecados e ajudam-nos a encontrar o Senhor. Porque “quem procura a Deus
querendo continuar com os seus gostos, procura-o de noite e, de noite, não o
encontrará”12.
A fonte
desta mortificação está principalmente no trabalho diário: nos pormenores de
ordem, na pontualidade com que começamos as nossas tarefas, na intensidade com
que as realizamos; na convivência com os colegas, que nos deparará ocasiões de
mortificar o nosso egoísmo e de contribuir para criar um clima mais agradável à
nossa volta. “Mortificações que não mortifiquem os outros, que nos tornem mais
delicados, mais compreensivos, mais abertos a todos. Não seremos mortificados
se formos suscetíveis, se estivermos preocupados apenas com os nossos egoísmos,
se esmagarmos os outros, se não nos soubermos privar do supérfluo e, às vezes,
do necessário; se nos entristecermos quando as coisas não correm como tínhamos
previsto. Pelo contrário, seremos mortificados se nos soubermos fazer tudo para
todos, para salvar a todos (ICor. IX, 22)”13. Cada um de nós deve preparar um
plano concreto de pequenos sacrifícios para oferecer ao Senhor diariamente
nesta Quaresma.
III. NÃO
PODEMOS DEIXAR passar este dia sem fomentar na alma um desejo profundo e eficaz
de voltar uma vez mais para Deus, como o filho pródigo, a fim de estarmos mais
perto dEle. São Paulo, na segunda leitura da Missa, diz que este é um tempo
excelente que devemos aproveitar para nos convertermos: Nós vos exortamos a não
receber a graça de Deus em vão [...]. Agora é o tempo favorável, agora é o dia
da salvação (14). E o Senhor nos repete a cada um, na intimidade do coração:
Convertei-vos. Voltai-vos para mim de todo o coração.
Abre-se
agora um tempo em que este recomeçar em Cristo se irá apoiar numa particular
graça de Deus, própria do tempo litúrgico que começamos. Por isso, a mensagem
da Quaresma está repassada de alegria e de esperança, ainda que seja uma
mensagem de penitência e mortificação.
“Quando
algum de nós reconhece estar triste, deve pensar: é que não estou
suficientemente perto de Cristo. E o mesmo deve pensar quando reconhece em si
uma clara tendência para o mau humor, para a irritação. E não deve pretender
jogar a culpa nas coisas que tem à sua volta, pois seria um erro e uma maneira
de se desorientar na procura da causa dos seus estados de ânimo”15. Às vezes,
certa apatia ou tristeza espiritual pode ser motivada pelo cansaço, pela
doença..., mas com muito mais freqüência procede da falta de generosidade em
corresponder ao que o Senhor nos pede, do pouco esforço em mortificar os sentidos,
da falta de preocupação pelos outros. Em resumo, de um estado de tibieza.
Em Cristo
encontramos sempre o remédio para uma possível tibieza e as forças para vencer
defeitos que de outro modo seriam insuperáveis. Quando alguém diz: “Sou
irremediavelmente preguiçoso, não sou tenaz, não consigo terminar as coisas que
começo, deveria pensar (hoje): Não estou tão perto de Cristo como deveria.
“Por isso,
aquilo que cada um de nós possa reconhecer na sua vida como defeito, como
doença, deveria ser imediatamente referido a este exame íntimo e direto: Não
sou perseverante? Não estou perto de Cristo. Não sinto alegria? Não estou perto
de Cristo. Vou deixar de pensar que a culpa é do trabalho, que a culpa é da
família, dos pais ou dos filhos... Não. A culpa íntima é do fato de eu não
estar perto de Cristo. E Cristo me está dizendo: Volta. Voltai-vos para mim de
todo o coração.
“[...] Tempo
para que cada um se sinta urgido por Jesus Cristo. Para que os que alguma vez
se sentiram inclinados a adiar esta decisão saibam que chegou o momento. Para
que os que estão dominados pelo pessimismo, pensando que os seus defeitos não
têm remédio, saibam que chegou o momento. Começa a Quaresma; vamos encará-la
como um tempo de mudança e de esperança” (16).
Francisco
Fernández-Carvajal
(1) Cfr.
Conc. Vat. II, Const. Sacrossanctum Concilium, 109;
(2) Joel
2,12;
(3) Gen.
3,19;
(4) J.
Leclercq, Siguiendo el año litúrgico, Madrid, 1957, pág. 117;
(5) João
Paulo II, Homilia da quarta-feira de cinzas, 28-II-1979;
(6) cfr. Mt.
6,24;
(7) Ez.
36,31-32;
(8) João
Paulo II, Carta Novo incipiente, 8-IV-1979;
(9) Sl.
50,3-6.12-14.17;
(10) São
Francisco de Sales, Sermão sobre o jejum;
(11) São
Leão Magno,Liturgia das Horas. Segunda leitura da quinta-feira depois das
Cinzas;
(12) São
João da Cruz, Cântico espiritual, 3,3;
(13)
Josemaría Escrivá,É Cristo que passa, 3ª ed., Quadrante, São Paulo, n. 9;
(14) 2 Cor
5, 20;Segunda leitura da Missa da Quarta-feira de Cinzas;
(15) A. M.
García Dorronsoro, Tiempo para creer, pág. 118;
(16) ib.
Evangelho:
Mt. 6,1-6.16-18
1. Esmola,
jejum e oração no oculto. Mateus 6,1-18 comporta três
“reflexões” de Jesus com relação às boas obras judaicas (a
esmola: 6,2-4; a oração: 6,5-6; o jejum: 6,16-18), com o Pai Nosso
intercalado no meio [vv. 7-15].
2. As três
“boas obras” – esmola, jejum e oração - devem
ser feitas por seu valor intrínseco, que só Deus
vê, e não para serem vistas pelas pessoas, clama Jesus.
3. A
implantação do Reino de Deus, o Reino da Justiça deve
ser a partir do coração de quem acredita. “Ficai
atentos para não praticar a vossa
justiça diante dos homens, só para serdes vistos por eles” (v. 1).
4. – Quando
deres esmola não toquem trombetas nas sinagogas e nas ruas para serem louvados
… já receberam sua recompensa – v. 2
- Quando
orardes não façais oração em pé nas sinagogas e esquinas para serem vistos … já
receberam sua recompensa – v. 5
- Quando
jejuardes não façais rosto sombrio desfigurando o rosto para ver que estão
jejuando … já receberam sua recompensa – v. 16
5. – Quando
deres esmola não saiba a esquerda o que faz a direita… e teu Pai, que vê
o escondido, te recompensará - v. 3-4
- Quando
orardes entra no teu quarto, fecha a porta e reza a teu Pai
em segredo… e teu Pai, que vê o escondido, te recompensará
- v.6
-
Quando jejuardes perfuma a cabeça, lava o rosto para que não
percebam… e teu Pai, que vê o escondido, te recompensará - v. 17s
1ª leitura:
Jl. 2,12–18
6. O texto
do profeta Joel exorta à penitência (= voltar -vv.12-14), ao jejum (v.
15) e à súplica (vv. 16-17). O texto se liga aos versículos 13-14 do
capítulo 1: “vesti-vos de luto, sacerdotes; gemei, ministros do altar;
vinde dormir em esteiras, ministros do meu Deus, porque faltam
oferta e libação no templo do vosso Deus. Proclamai um jejum,
convocai a assembléia, reuni os chefes e os camponeses
no templo do Senhor vosso Deus, e clamai ao
Senhor”.
7.
“Convertei-vos a mim de todo o coração, com jejum, com pranto, com luto”
(v. 12). Retornai a mim, mas não com uma volta interesseira e
falsa, mas com um retorno sincero a partir do interior,
da alma, do coração.
8.
“Rasgai vossos corações, e não as vossas vestes” (v. 13a). “Convertei-vos
ao Senhor, vosso Deus, pois é compassivo e clemente, paciente e
misericordioso (v.13b). Os atributos de Deus são tomados de uma fórmula
litúrgica freqüente: ver Jr. 4,4; Ex. 34,6; Sl. 86,15;
Sl. 103,8.
9. É uma
convocação para todo aquele que quiser ouvir. Tocai a
trombeta… ordenai um jejum… proclamai uma reunião
sagrada, uma celebração…. reuni o povo… convocai a comunidade (vv.
15-16). Para que o povo volte ao seu
Deus e Senhor, toda a comunidade é
convocada a se colocar perante esse Deus e
renovar-se a partir da conversão da alma.
10.
E o texto termina: “O Senhor encheu-se de zelo por sua terra
e teve piedade de seu povo” (v. 18). Se o povo voltou, foi
respondendo ao chamado do Senhor – e não por iniciativa própria. Até para
voltar para o Deus da Aliança é preciso que o Senhor tome a iniciativa. Aliás…,
a complacência, a misericórdia e o perdão brotam sempre e
primeiramente do coração de Deus.
2ª leitura:
2Cor. 5,20-6,2
11. Paulo
lança também para nós a exortação: “deixai-vos reconciliar com Deus” (5,20). E
insiste: “este é o tempo favorável” (6,2). Parece apresentar-nos um Deus
de pé e pronto para perdoar, simplesmente aguardando que seu
povo se “volte” para ele. Só Ele pode
perdoar. Mas é indispensável a abertura de
coração. Deus não invade nunca! (nem para perdoar…
ele sempre pede licença para entrar num coração
arrependido).
12. “Somos
embaixadores de Deus”, quer dizer, somos enviados a proclamar, a
convocar e a levar o perdão do
Senhor.
13. E
Paulo insiste: “exortamo-vos a não receber em vão
a graça de Deus” (6,1). É tanta a insistência de
Deus em querer perdoar, que só pode
vir mesmo de um Deus criador, reconciliador,
salvador e Pai. É preciso entrever
aqui um Deus que trata seu povo não como
criaturas, mas como filhos amados. Paulo iria dizer:
filhos amados no Filho amado!
14. “No
tempo favorável eu te ouvi, e no dia da salvação
vim em teu auxílio” (6,2a). E quantas vezes nos colocamos
como aqueles que se voltam para cobrar: onde estás,
Senhor, que não me escutas? Onde estás que não vês minhas lágrimas?
Não é onde Deus está; nós é que estamos em lugar errado,
com disposições enganadas.
15. Pense
comigo: não dá gosto pensar que o nosso
Deus nos diz a cada um de nós:
no tempo favorável eu te ouvi, eu
vim em teu auxílio! Você não percebeu mas eu
estava presente, caminhando ao teu lado e te amparando.
R e f l e t
i n d o
1. Paulo na
segunda leitura vai proclamar o “tempo da reconciliação” com Deus.
Esse tempo é agora, é nesse mês, nesse ano. Não podemos deixar para depois. É
Deus visitando-nos, visitando a nossa vida para transformá-la
(é lógico, para melhor!).
2. E toda
liturgia vai insistir na penitência verdadeira e autêntica:
“rasgar o coração, não apenas as vestes” e no caráter
interior do jejum, juntamente com as boas obras”, a
esmola e a oração. Aliás, sempre a mensagem
de Jesus vai insistir e recordar na verdade do coração:
hipócritas, quem vos ensinou a fugir da ira de Deus?
3. A
mortificação e o jejum são meios para libertar-nos dos
apegos e da vida superficial, mas não é fim em si
mesmo. O fim é a conversão, a volta para Deus, que, na
2ª. leitura, ganha um tom de esperançosa alegria, bem de acordo com o evangelho
que manda usar perfumes para não ostentar o
jejum. Conversão é encontro com Deus que se volta
para nós, ou que já está (há
muito tempo, isto é, sempre) voltado para nós.
4. A oração
do dia e das oferendas falam do combate ao vício e do
domínio de si. Mas o importante do jejum
não é o que fazemos, mas a maravilha que Deus
opera em nós. Nossa parte é simplesmente
preparar-nos para receber a graça. A
conversão não é tanto fazer algo quanto deixar-se
fazer por Deus (prefácio).
5. Na
quaresma vamos dar maior chance a
Deus para agir em nós, refreando nossos
instintos egoístas (todos eles, também os
do ter e do dominar), tentando acompanhar Aquele que se
liberou completamente para, em obediência a
Deus, doar-se por amor a nós.
6. Impondo
restrições aos nossos instintos, abrimos em nosso coração mais espaço
para Deus e seus filhos [que, por acaso (!) são
nossos irmãos]. A melhor penitência é sempre
abrir espaço (todo espaço do coração) para Deus e
para nossos irmãos.
7. Estamos
na Quaresma, um tempo novo: tempo de apelo para olhar a própria vida, a
fim de ouvir os apelos do
Senhor para nos reconciliarmos com ele, com os outros
e com a natureza.
8. Mateus,
ao falar de esmola, jejum e oração, não dá
conselhos para esse tempo, mas indica a vivência
diária no seguimento do Senhor: é o
caminho proposto aos seguidores do Reino da Justiça, em cumprimento à
vontade do Pai.
9. Esmola,
oração e jejum:
9.1. A
esmola consiste em ir além da doação de trocadinhos; ela
envolve a entrega de si com o que se
é e o que se tem. Esmolar é dar a si
mesmo ao outro.
9.2. A
oração, conforme diz Mt a seguir (6,7-15), não é a
multiplicação de fórmulas e de muitas palavras, como se
fosse uma mágica para forçar Deus a dar o
que queremos. Oramos, não porque o Pai desconhece
nossas necessidades e anseios, mas sim porque queremos
nos entregar a ele para melhor conhecer a
sua vontade sobre nós, sobre os
outros e sobre a natureza.
9.3. O
jejum: a lei judaica impunha o jejum durante a festa da
expiação (Lv. 16)porém, os fariseus faziam duas vezes
por semana com alarde e sinais visíveis. Interessante ver
Lv 16,29ss: “no dia dez do sétimo mês
fareis penitência… porque nesse dia se faz a
expiação por vós, para purificar-vos. Ficareis
puros de todo pecado diante do Senhor”.
9.4.
Jesus apresenta um modo totalmente novo de jejuar, pois vai
direto ao coração, provoca uma mudança de vida (do ser
e do agir). Perfumem a cabeça e fiquem com o rosto alegre: perfume
e alegria só podem ser fruto do encontro e da presença
de um Deus no coração.
10. Gestos
de reconciliação nos levam até Deus. O que foi rompido precisa ser
reatado. Quando se foi embora, é preciso voltar. Quando se
deu as costas, é necessário virar-se e retornar.
Deixem-se reconciliar com Deus, diz Paulo.
Reconciliação, reatar aliança, envolve duas partes: Deus que
é sempre fiel e sempre toma a iniciativa de oferecer o perdão e de
chamar o pecador; e o pecador que só tem uma
atitude a tomar: voltar, olhar para Deus e abrir-se para acolher
seu perdão.
11. Joel ao
chamar o povo de Deus à conversão pelo jejum e penitência apresenta
a compaixão, a clemência, a paciência e a misericórdia de Deus. O
perdão requer do ser humano um coração novo, manifestado num
arrependimento sincero, autêntico e verdadeiro.
12. Mas
coração novo só acontece com um coração aberto à Palavra
de Deus. Amolecer o coração é necessário para que contemplemos a
Deus na sua justiça. Isso significa, de um lado, a “aceitação
plena da vontade do Deus de Israel, e por outro, a equidade
em relação ao próximo” (cf. Ex. 29,12-17).
13.
Conversão é o caminho da vida cristã, a fim de que a
Ressurreição seja uma realidade salvífica em nossas
vidas, relações e estruturas. O tempo da Quaresma
é um tempo privilegiado de encontro com a Palavra de
Deus que nos leva e prepara para o grande
acontecimento da nossa fé, o memorial
da paixão, morte e ressurreição do Senhor, a Páscoa.
14.
Oração. Ó Deus, Pai e Mãe de ternura, que tudo vês em segredo e que tudo
acompanhas com teu amor, olha esta comunidade reunida para o início
da quaresma. Apresentando diante de ti a
fragilidade de sua existência, concedei-nos, ó Deus,
compassivo e misericordioso, que a penitencia nos fortaleça no
combate contra o mal e ajude a transformar o mundo de sequidão e
sofrimento, em que vivemos, em lugar em que teus cuidados de Pai se manifestem.
Por Cristo Nosso Senhor.
prof.
Ângelo Vitório Zambon
1. O temo
litúrgico da quaresma chegou e é sem duvida um tempo de graça, que requer um
grande desejo interior de mudança de vida. Entramos, de fato, na quaresma com a
liturgia da quarta feira de cinza, cujo conteúdo nos convida imediatamente a
lembrar da nossa condição mortal, ou seja, da nossa vida que, apesar dos nossos
esforços humanos, não vai pra lugar nenhum se não tiver a ajuda de Deus. O
objetivo do tempo de quaresma é preparar o coração dos fieis, para que possamos
acolher a vida verdadeira que vem á nós através da Ressurreição de Cristo. Para
isso acontecer, é preciso rasgar os nossos corações (cf. 1ª leitura de hoje),
quer dizer que deve uma vez por todas cair a ficha da nossa realidade, da nossa
condição humana, sem nenhuma falsidade ou subterfúgio, perceber o nosso nada,
olhar na cara a nossa morte. O rito das cinzas deve servir para isso, para nos
lembrar que, apesar de toda falsa aparência, somos nada mais que um punhado de
pó e, a única realidade indiscutível é que voltaremos, no final da vida, a ser
pó. Nessa altura, é importante salientar que a liturgia de quarta feira de
cinza não tem como único e exclusivo objetivo de nos humilhar, de passar na
nossa cara aquilo que de toda forma queremos esconder a nós mesmos, mas sim de
preparar a passagem de Deus na nossa vida e, ao mesmo tempo, preparar a nossa
mesma passagem da morte do pecado pela vida verdadeira que recebemos através da
Ressurreição de Cristo. Para realizarmos estas duas passagens (é o sentido do
termo Páscoa) precisamos prestar atenção aos conselhos da liturgia da Palavra
de hoje, muito forte e profunda.
2. “Rasgai o
coração e não as vestes” (Joel 2,13).
O primeiro
conselho que a Palavra nos oferece para podermos acolher a vida verdadeira é de
sair de qualquer forma de hipocrisia. É isso que, seja a primeira leitura que o
Evangelho, se esforçam de dizer. Um coração falso não é apto para acolher a
novidade da vida de Cristo, que veio a nós pagando um preço duríssimo, em nome
da Verdade. Quem, então, é acostumado a passar a própria vida arrumando a
fachada, se escondendo atrás das aparências, enfeitando o exterior não vai ter
muitas chances para passar com Cristo deste mundo para o Pai (cf. Jo 13,10).
“Rasgar o coração e não as vestes” , como nos convida o profeta Joel, quer
dizer isso mesmo: aquilo que deve ser modificado não deve ser o externo da
nossa vida, mas sim as nossas atitudes erradas que nascem de dentro do nosso
coração. É ali que a nossa atenção deve se dirigir ao longo das seis semanas do
tempo de quaresma. Não é uma penitencia externa que a liturgia exige, mas uma
mudança interna: é isso que dói! “Rasgar o coração” exige a capacidade de
escutar, olhar com atenção aquilo que esta na nossa consciência para
entendermos, á luz da Palavra de Deus, aquilo que deve ser “rasgado”, ou seja,
modificado, o até tirado totalmente. Na realidade, na Palavra de Deus que
escutamos não existe a contraposição entre interno e externo, mas uma profunda
unidade. As leituras nos alertam do perigo de procurar uma mudança da vida indo
pelo caminho errado, ou seja, enfeitando o externo, modificando “as vestes”,
procurando uma segurança exterior, mais fácil e mais tranqüila, mas que não
produz a conversão profunda do coração, exigência básica para que a luz da
Ressurreição de Cristo penetre em nós.
Na mesma
linha são as palavras que ouvimos no Evangelho de Hoje. “E o teu Pai que vê o
que está escondido, te dera a recompensa” (Mt. 6,15).
São palavras
simples, mas que apontam a direção que a nossa vida espiritual deve tomar. Quem
é de verdade interessado a buscar Deus e a sua gloria, deve aprender a
percorrer o caminho do coração, da vida interior, saboreando a beleza do
encontro pessoal com Deus. Se, de fato, é verdade que o nosso Pai vê no
escondido - idéia repetida três vezes em poucos versículos, como se Jesus
quisesse dizer: “O cara, quer entender ou não?” - então, e ali que devemos ir,
no escondido, no segredo do nosso coração. É esta a estupenda indicação, aliás,
revelação, que encontramos no começo do tempo de quaresma. Se tentarmos este
caminho apontado pela liturgia de hoje, descobriremos que a via interior, a
busca de Deus no interior do nosso coração, da nossa consciência não é uma
fuga, mas sim uma profunda exigência da alma. Para sairmos de uma vida
hipócrita, para realizarmos atos de autentica gratidão e não fruto do desejo de
nos amostrarmos perante os homens, buscando a gloria externa do mundo,
precisamos passar pelo fogo da purificação interna, escutar o que está
acontecendo dentro de nós. É isso que os grandes profetas e místicos do Antigo Testamento
fizeram para melhor entender o sentido da vontade de Deus. Moisés, Elias,
Jeremias, só pra citar alguns, passaram através da peneira do deserto, da busca
de Deus através do silencio, da vida escondida em Deus (cf. Col. 3,1-4: será a
segunda leitura do domingo de Páscoa). E assim, também João Batista e o mesmo
Jesus entraram no deserto como caminho insubstituível para uma busca autentica
de Deus. O silencio interior é o clima necessário para que Deus possa entrar no
nosso coração, na nossa consciência e rasgar tudo aquilo que de errado
encontrar nele, para depois sairmos desta experiência, que podemos chamar de
mística, totalmente renovados, purificados do nosso egoísmo, da nossa vida
autocentrada e auto-suficiente, para uma vida de gratidão.
3. “Nós vos
suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus... Nós vos exortamos a não
receberdes em vão a graça de Deus” (2Cor. 5,20.6,1).
A final de
conta, depois de todo aquilo que andamos meditando, poderíamos nos questionar:
mas a que adianta tanta vida interior, tanto silencio? Quais são os frutos do
verdadeiro silencio como busca do dialogo profundo com Deus? Para respondermos
a esta pergunta, não precisamos ir muito longe com a fantasia: são Paulo, na
segunda leitura de hoje, nos oferece uma ótima resposta. Se na nossa vida
corriqueira, depois de tantos esforços espirituais, aparece um pouco mais de
caridade, um pouco mais de atenção para os irmãos e as irmãs que vivem perto de
nós, um pouco mais de humildade isso quer dizer que a nossa alma se reconciliou
com Deus e que a graça de Deus derramada em nós através da vida sacramental não
foi em vão. A conversão exigida no tempo de quaresma requer, assim, dois pólos:
de um lado uma constante referencia a Deus e a sua Palavra e, do outro, o
desejo profundo de um estilo de vida diferente, de um jeito de ser mais humano
e autentico.
Pedimos a
Deus que neste tempo de quaresma nos ajude a percorrer este caminho, deixando
de lado qualquer forma de hipocrisia e de busca da gloria do mundo, para
corrermos com entusiasmo na trilha da Verdade que Jesus, com a sua vida
exemplar, traçou pra nós.
1. Daqui a
pouco a Igreja, através dos seus ministros, irá colocar um pouco de cinzas nas
cabeças das pessoas presentes.É com este gesto que a Igreja inicia a Quaresma,
tempo forte, tempo de penitencia e conversão. Colocar cinzas sobre a cabeça
quer dizer lembrar para a humanidade que a vida sem Deus não vale nada. È Deus,
de fato, o dono da vida: é Ele que a doa e é também Ele que a tira. Só Deus
pode soprar o seu Espírito para dar vida a estas cinzas.
Torna-se,
então, necessário pensar a este gesto. Quer dizer a Igreja com isso? Que eu não
sou nada. Que os meus projetos, os meus planos, os meus sonhos, a minha vaidade
não vale nada. Que, se eu estou me achando alguma coisa por aquilo que faço, é
importante que logo saiba o sentido dos meus dias: um punhado de cinza. (Toma e
durma com um barulho desse).
2. Se isso é
verdade, então: “Ficai atentos!” (Mt. 6). É isso o brado que sai do Evangelho
de hoje. Ficamos atentos para não desperdiçarmos o tempo favorável, que Deus
quer nos oferecer com este tempo litúrgico. Na segunda leitura que ouvimos, São
Paulo nos alerta que: “É hoje o dia da salvação” (2Cor.). Se é hoje, quer dizer
que não é amanhã, que devemos prestar atenção ao presente, que não podemos
adiar, pois é agora que Deus está passando com o seu Espírito, para nos
conduzir no caminho da conversão. Não somos nós que temos o controle do tempo:
é Deus que decide o dia e a hora da sua visita. Prestamos, então, atenção a
tudo aquilo que Ele quer nos dizer.
3.
Deus, neste tempo favorável da Quaresma, quer nos mostrar o que? Quer nos
mostrar o que? O tamanho do nosso pecado que, como nos lembra Jesus no
Evangelho, tem um nome bem definido: a hipocrisia.”Ficai atentos para não
praticar a vossa justiça na frente dos homens só para serdes vistos por eles”
(Mt. 6,1). Versículo fortíssimo pois Jesus, com palavras simples, coloca o dedo
numa praga que doe e muito. Segundo o Evangelho o problema não é fazer uma
obra, uma ação boa, mas o porque realizamos esta ação, a motivação que está por
trás. Então, ou nas nossas ações buscamos a gloria de Deus ou, pelo contrario,
buscamos a gloria dos homens.
“Para serem
elogiados pelos homens... Para serem vistos pelos homens... Para que os homens
vejam...” (Mt. 6,2.5.16). Um coração hipócrita, um coração dividido, na ação
que cumpre, busca a visibilidade, a aprovação, o elogio, em outras palavras, a
gloria dos homens.Quem age desta forma, não conhece a Deus, apesar de
falar o seu nome. De fato, Deus, o nosso Pai, “vê o que está oculto... o que
está escondido” (Mt. 4.6). Quem ama a Deus não busca visibilidade, se amostrar,
porque sabe que Deus fala no silêncio do coração. Se Isso é verdade, ou seja se
o jeito de Deus de falar e encontrar o homem e a mulher é no secreto, no
escondido, então o sentido da vida é a busca da própria interioridade, a
descoberta da vida interior. E é isso mesmo, também, o sentido do tempo de
Quaresma: ajudar as pessoas perdidas, porque fora de sim, na busca de algo que
nunca poderão encontrar no mundo, ou seja a vida, a felicidade, para que se
encontrem com Deus, que fala no silêncio da alma. Era aquilo que santo
Agostinho dizia num famoso passo da obra “A verdadeira religião”: “Não sair de
te mesmo: entra em ti, pois no interior do homem mora a Verdade”.
4.Aprofundando
o sentido destas leituras do primeiro dia de Quaresma, podemos nos perguntar:
porque Jesus no Evangelho, insiste tanto no golpear a hipocrisia? A resposta
poderia ser esta: porque a hipocrisia produz o pior pecado que exista: a
idolatria. Quando uma pessoa busca visibilidade nas ações que cumpre, é porque
no pedestal da vida dela não está Deus, mas ela mesma. É este o grande
problema. Posso ser uma pessoa religiosa, um padre uma freira, mas o problema
de fundo é: quem só eu? Será que me conheço, que conheço as minhas intenções
mais profundas? Será que conheço a Deus, ou pelo menos um pouco dele, para
buscar a sua gloria em cada momento da minha vida, ou o estou explorando,
talvez também de uma maneira inconsciente? O pior pecado de todos, que Deus
golpeia constantemente em inúmeros passos bíblicos, é mesmo a idolatria. Só que
esta, no sentido espiritual, que é o verdadeiro sentido da Palavra de Deus (cf.
são Paulo, que dizia “a letra mata, é o espírito que dá vida” 2Cor. 4,5), não é
a simples adoração das imagem ou de estatuas (como sempre nos falam os nossos
irmãos evangélicos). A verdadeira idolatria é o culto de se mesmo, que produz
uma vida fechada, egoísta, fria, aonde tudo é a meu serviço e tudo é feito para
procurar a gloria dos homens. É claro que, neste estilo de vida hipócrita e
idolatra, nada é feito de graça mas tudo deve ter um retorno. Nesta lógica
interesseira, são afetados os mesmos sentimentos. Seria interessante, nessa
altura, avaliarmos neste tempo de Quaresma, a verdade dos nossos
relacionamentos, para percebermos a autenticidade ou a falsidade deles. Uma
vida hipócrita e idolatra, que produz um estilo de vida interesseiro, é a
negação do Evangelho, que é gratuidade, dom. O sentido de toda a vida
espiritual, do seguimento a Jesus, é deixar que o Espírito Santo reproduza em
nós os mesmos sentimentos, que eram de Jesus (cf. Fil. 2,5). Agora, a base, o
âmago da vida de Jesus é o amor e, o amor, assim como Ele mesmo o manifestou na
sua esplendida vida, é doação total de se mesmo. Por isso a “caça” aos germes
de hipocrisia e idolatria presentes na minha vida, neste tempo de Quaresma, é
fundamental. A hipocrisia é um câncer, que devagarzinho, vai corroendo toda a
vida espiritual e, se não cuidar logo desta doença da alma, ela mesma vai
perecer. Por isso a Igreja, desde a antigüidade, aconselha os remédios da
oração, esmola e jejum.
5. Se é
verdade que o objetivo da primeira parte do tempo de Quaresma é desmascarar o
pecado, que se esconde dentro de nós, é também verdade que o objetivo ultimo é
fazer a experiência da misericórdia de Deus. “Daí-me de novo a alegria de ser
salvo” diz o salmo 51, que ouvimos esta noite. Deixar que a Palavra de Deus entre
dentro de mim para me mostrar o erro, quer dizer, também, aceitar o caminho de
subida, através do perdão. A coisa pior que poderia nos acontecer neste tempo
de Quaresma, é aquela de ficarmos tão machucados e, ao mesmo tempo, tão
espantados pelos erros e pecados que descobrimos dentro de nós, que não
queremos nem o perdão de Deus. Se a descoberta do pecado nos machuca, isso deve
produzir imeditamente o desejo do perdão de Deus. O pecado, de fato, é sempre
uma falta de amor e, através do perdão, Deus reativa a Sua relação comigo. Se,
então, acontece que fico muito magoado com aquilo que a espiritualidade da
Quaresma está me propondo, ao ponto que penso até de desistir da caminhada, é
porque o câncer da hipocrisia, a busca da própria afirmação pessoal, em outras
palavras o orgulho, chegou a um nível tão espantoso, que está querendo até
fugir do perdão de Deus.
6. A
caminhada que a Igreja propõe no tempo de Quaresma é dividida claramente em
dois momentos. No primeiro, somos convidados a escutar no silêncio a Palavra do
Senhor, para que nos mostre as falhas escondidas no nosso coração. É uma fase
difícil, dura, dolorosa mas necessária: devo chegar um dia –tomara que seja
nesta Quaresma- a tomar vergonha da minha hipocrisia absurda, do meu orgulho,
que é a raiz de todos os pecados. No segundo momento, a Quaresma aponta o
caminho do arrependimento, para fazermos a maravilhosa experiência da infinita
misericórdia de Deus e da sua doce paternidade. Somente com um coração
reconciliado com Deus (“deixai-vos reconciliar com Deus” dizia a segunda
leitura de hoje), conseguiremos receber um pouco da luz da Páscoa e, assim,
mergulharmos na vida eterna. Boa caminhada para todos e todas.
padre
Paolo Cugini
“Jejuou
durante quarenta dias e quarenta noites e, por fim, teve fome”
Queridos
irmãos e irmãs!
No início da
Quaresma, que constitui um caminho de treino espiritual mais intenso, a
liturgia propõe-nos três práticas penitenciais muito queridas à tradição bíblica
e cristã – a oração, a esmola, o jejum – a fim de nos predispormos para
celebrar melhor a Páscoa e deste modo fazer experiência do poder de Deus que,
como ouviremos na vigília pascal, «derrota o mal, lava as culpas, restitui a
inocência aos pecadores, a alegria aos aflitos. Dissipa o ódio, domina a
insensibilidade dos poderosos, promove a concórdia e a paz» (Hino pascal). Na
habitual mensagem quaresmal, gostaria de refletir este ano em particular sobre
o valor e o sentido do jejum. De fato a Quaresma traz à mente os quarenta dias
de jejum vividos pelo Senhor no deserto antes de empreender a sua missão
pública. Lemos no Evangelho: «O Espírito conduziu Jesus ao deserto a fim de ser
tentado pelo demônio. Jejuou durante quarenta dias e quarenta noites e, por
fim, teve fome» (Mt. 4,1-2). Como Moisés antes de receber as Tábuas da Lei (cf.
Êx. 34,28), como Elias antes de encontrar o Senhor no monte Oreb (cf. 1Rs.
19,8), assim Jesus rezando e jejuando se preparou para a sua missão, cujo
início foi um duro confronto com o tentador.
Podemos
perguntar que valor e que sentido tem para nós, cristãos, privar-nos de algo
que seria em si bom e útil para o nosso sustento. As Sagradas Escrituras e toda
a tradição cristã ensinam que o jejum é de grande ajuda para evitar o pecado e
tudo o que a ele induz. Por isto, na história da salvação é frequente o convite
a jejuar. Já nas primeiras páginas da Sagrada Escritura o Senhor comanda que o
homem se abstenha de comer o fruto proibido: «Podes comer o fruto de todas as
árvores do jardim; mas não comas o da árvore da ciência do bem e do mal,
porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás» (Gn. 2,16-17). Comentando
a ordem divina, São Basílio observa que «o jejum foi ordenado no Paraíso», e «o
primeiro mandamento neste sentido foi dado a Adão». Portanto, ele conclui: «O
"não comas" e, portanto, a lei do jejum e da abstinência» (cf. Sermo
de jejunio: PG 31, 163, 98). Dado que todos estamos entorpecidos pelo
pecado e pelas suas consequências, o jejum é-nos oferecido como um meio para
restabelecer a amizade com o Senhor. Assim fez Esdras antes da viagem de
regresso do exílio à Terra Prometida, convidando o povo reunido a jejuar «para
nos humilhar – diz – diante do nosso Deus» (8,21). O Onipotente ouviu a sua
prece e garantiu os seus favores e a sua proteção. O mesmo fizeram os
habitantes de Nínive que, sensíveis ao apelo de Jonas ao arrependimento,
proclamaram, como testemunho da sua sinceridade, um jejum dizendo: «Quem sabe
se Deus não Se arrependerá, e acalmará o ardor da Sua ira, de modo que não
pereçamos?» (3,9). Também então Deus viu as suas obras e os poupou.
No Novo
Testamento, Jesus ressalta a razão profunda do jejum, condenando a atitude dos
fariseus, os quais observaram escrupulosamente as prescrições impostas pela
lei, mas o seu coração estava distante de Deus. O verdadeiro jejum, repete
também noutras partes o Mestre divino, é antes cumprir a vontade do Pai
celeste, o qual «vê no oculto, recompensar-te-á» (Mt. 6,18). Ele próprio dá o
exemplo respondendo a satanás, no final dos 40 dias transcorridos no deserto,
que «nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus»
(Mt. 4,4). O verdadeiro jejum finaliza-se, portanto, a comer o «verdadeiro
alimento», que é fazer a vontade do Pai (cf. Jo 4,34). Portanto, se Adão
desobedeceu ao mandamento do Senhor «de não comer o fruto da árvore da ciência
do bem e do mal», com o jejum o crente deseja submeter-se humildemente a Deus,
confiando na sua bondade e misericórdia.
Encontramos
a prática do jejum muito presente na primeira comunidade cristã (cf. At. 13,3;
14,22; 27,21; 2 Cor 6,5). Também os Padres da Igreja falam da força do jejum,
capaz de impedir o pecado, de reprimir os desejos do «velho Adão», e de abrir
no coração do crente o caminho para Deus. O jejum é também uma prática
frequente e recomendada pelos santos de todas as épocas. Escreve são Pedro
Crisólogo: «O jejum é a alma da oração e a misericórdia é a vida do jejum,
portanto quem reza jejue. Quem jejua tenha misericórdia. Quem, ao pedir, deseja
ser atendido, atenda quem a ele se dirige. Quem quer encontrar aberto em seu
benefício o coração de Deus não feche o seu a quem o suplica» (Sermo 43; PL 52,
320.332).
Nos nossos
dias, a prática do jejum parece ter perdido um pouco do seu valor espiritual e
ter adquirido antes, numa cultura marcada pela busca da satisfação material, o
valor de uma medida terapêutica para a cura do próprio corpo. Jejuar sem dúvida
é bom para o bem-estar, mas para os crentes é em primeiro lugar uma «terapia»
para curar tudo o que os impede de se conformarem com a vontade de Deus. Na
Constituição apostólica Paenitemini de 1966, o Servo de Deus
Paulo VI reconhecia a necessidade de colocar o jejum no contexto da chamada de
cada cristão a «não viver mais para si mesmo, mas para aquele que o amou e se
entregou a si por ele, e... também a viver pelos irmãos» (cf. cap. I). A
Quaresma poderia ser uma ocasião oportuna para retomar as normas contidas na
citada Constituição apostólica, valorizando o significado autêntico e perene
desta antiga prática penitencial, que pode ajudar-nos a mortificar o nosso
egoísmo e a abrir o coração ao amor de Deus e do próximo, primeiro e máximo
mandamento da nova Lei e compêndio de todo o Evangelho (cf. Mt. 22,34-40).
A prática
fiel do jejum contribui ainda para conferir unidade à pessoa, corpo e alma,
ajudando-a a evitar o pecado e a crescer na intimidade com o Senhor. Santo
Agostinho, que conhecia bem as próprias inclinações negativas e as definia «nó
complicado e emaranhado» (Confissões, II, 10.18), no seu tratado A utilidade do
jejum, escrevia: «Certamente é um suplício que me inflijo, mas para que Ele me
perdoe; castigo-me por mim mesmo para que Ele me ajude, para aprazer aos seus
olhos, para alcançar o agrado da sua doçura» (Sermo 400, 3,3: L 40, 708).
Privar-se do sustento material que alimenta o corpo facilita uma ulterior
disposição para ouvir Cristo e para se alimentar da sua palavra de salvação.
Com o jejum e com a oração permitimos que Ele venha saciar a fome mais profunda
que vivemos no nosso íntimo: a fome e a sede de Deus.
Ao mesmo
tempo, o jejum ajuda-nos a tomar consciência da situação na qual vivem tantos
irmãos nossos. Na sua Primeira Carta São João admoesta: «Aquele que tiver bens
deste mundo e vir o seu irmão sofrer necessidade, mas lhe fechar o seu coração,
como estará nele o amor de Deus?» (3,17). Jejuar voluntariamente ajuda-nos a
cultivar o estilo do Bom Samaritano, que se inclina e socorre o irmão que sofre
(cf. Enc. Deus caritas est, 15). Escolhendo livremente privar-nos de algo para
ajudar os outros, mostramos concretamente que o próximo em dificuldade não nos
é indiferente. Precisamente para manter viva esta atitude de acolhimento e de
atenção para com os irmãos, encorajo as paróquias e todas as outras comunidades
a intensificar na Quaresma a prática do jejum pessoal e comunitário, cultivando
de igual modo a escuta da Palavra de Deus, a oração e a esmola. Foi este, desde
o início o estilo da comunidade cristã, na qual eram feitas coletas especiais
(cf. 2Cor. 8-9; Rm. 15,25-27), e os irmãos eram convidados a dar aos pobres
quanto, graças ao jejum, tinham poupado (cf. Didascalia Ap., V, 20,18). Também
hoje esta prática deve ser redescoberta e encorajada, sobretudo durante o tempo
litúrgico quaresmal.
De quanto
disse sobressai com grande clareza que o jejum representa uma prática ascética
importante, uma arma espiritual para lutar contra qualquer eventual apego
desordenado a nós mesmos. Privar-se voluntariamente do prazer dos alimentos e
de outros bens materiais, ajuda o discípulo de Cristo a controlar os apetites
da natureza fragilizada pela culpa da origem, cujos efeitos negativos atingem
toda a personalidade humana. Exorta oportunamente um antigo hino litúrgico
quaresmal: «Utamur ergo parcius, / verbis, cibis et potibus, / somno, iocis
et arcitius / perstemus in custodia – Usemos de modo mais sóbrio
palavras, alimentos, bebidas, sono e jogos, e permaneçamos mais atentamente
vigilantes».
Queridos
irmãos e irmãos, considerando bem, o jejum tem como sua finalidade última
ajudar cada um de nós, como escrevia o Servo de Deus Papa João Paulo II, a
fazer dom total de si a Deus (cf. Enc. Veritatis splendor, 21). A
Quaresma seja portanto valorizada em cada família e em cada comunidade cristã
para afastar tudo o que distrai o espírito e para intensificar o que alimenta a
alma abrindo-a ao amor de Deus e do próximo. Penso em particular num maior
compromisso na oração, na lectio divina, no recurso ao Sacramento da
Reconciliação e na participação ativa na Eucaristia, sobretudo na Santa Missa
dominical. Com esta disposição interior entremos no clima penitencial da
Quaresma. Acompanhe-nos a Bem-Aventurada Virgem Maria, Causa nostrae
laetitiae, e ampare-nos no esforço de libertar o nosso coração da
escravidão do pecado para o tornar cada vez mais «tabernáculo vivo de Deus».
Com estes votos, ao garantir a minha oração para que cada crente e comunidade
eclesial percorra um proveitoso itinerário quaresmal, concedo de coração a
todos a Bênção Apostólica.
Bento
XVI
11
de dezembro de 2008
Abrir
espaço para Deus
Matematicamente
falando, a Quaresma, tempo dos “quarenta dias”, vai do 1º domingo da quaresma
até a 4ª feira da semana santa. O tríduo santo já é contado como a Páscoa. Mas,
na Idade Média, os domingos foram descontados do tempo penitencial, cujo inicio
foi então antecipado para a quarta feira de cinzas. Mesmo não pertencendo
à tradição litúrgica mais antiga, as leituras são muito significativas. Têm
teor diferente daquele dos domingos da quaresma, que acentuam a preparação para
o batismo a ser administrados na noite pascal. Em Cinzas, o tema central é
mesmo a penitência.
Começa a
quaresma, tempo de penitência interior para prepararmos a Páscoa do senhor. A
liturgia da Igreja convida-nos com insistência a purificar a nossa alma e a
recomeçar novamente.
Diz o Senhor
Todo-Poderoso: "Convertei-vos a mim de todo o vosso coração, com
jejum, lagrimas e gemidos de luto. Rasgai os vossos corações, não as vossas
vestes; convertei-vos ao Senhor vosso Deus, porque Ele é compassivo e
misericordioso…", lemos na primeira leitura da missa de hoje (Jl. 2,11-18:
Rasgai os vossos corações, não as vestes).
E quando o
sacerdote impuser as cinzas sobre as nossas cabeças, recordar-nos-á as palavras
do Gênesis, depois do pecado original: “Memento homo, quia pulvis es”
Lembra-te, ó homem, de que és pó e em pó te hás de tornar.
“Memento
homo…” Lembra… E, não obstante, às vezes esquecemos que sem o Senhor não somos
nada. “Sem Deus, nada resta da grandeza do homem senão este montinho de pó
sobre um prato, numa ponta do altar, nesta quarta – feira de Cinzas, com o qual
a Igreja nos deposita na testa como que a nossa própria substância.
O Senhor
quer que nos desapeguemos das coisas da terra para que possamos dirigir-nos a
Ele, e que nos afastemos do pecado, que envelhece e mata, e retornemos à fonte
da vida e da alegria: “O próprio Jesus Cristo é a graça mais sublime de toda a
Quaresma. É ele quem se apresenta diante de nós na simplicidade admirável do
Evangelho”.
Dirigi o
coração a Deus, converter-se, significa estarmos dispostos a empregar todos os
meios para viver como Ele espera que vivamos, a não tentar servir a dois
senhores, a afastar da vida qualquer pecado deliberado. Jesus procura em nós um
coração contrito, conhecedor das suas faltas e pecados e disposto a
eliminá-los. Então lembrar-vos-eis do vosso proceder perverso e dos vossos dias
que não foram bons… O Senhor deseja uma dor sincera dos pecados, que se
manifestará antes, de mais nada na confissão sacramental: “Converter-se quer
dizer para nós procurar novamente o perdão e a força de Deus no sacramento da
reconciliação e assim recomeçar sempre, avançar diariamente”.
Para
fomentar em nós a contrição, a liturgia de hoje propõe-nos o Salmo 51(50) com
que o rei Davi manifestou o seu arrependimento, o mesmo com que tantos santos
suplicaram o perdão de Deus. Tende piedade de mim, Senhor, segundo a vossa
bondade. E, segundo a imensidão da vossa misericórdia, apagai a minha
iniqüidade, dizemos a Jesus com o profeta. Lavai-me totalmente da minha falta e
purificai-me do meu pecado. Eu reconheço a minha iniqüidade e tenho sempre
diante de mim o meu pecado. Somente contra vós pequei.
Ò meu Deus,
criai em mim, um coração puro e renovai-me o Espírito de firmeza. Não me
expulseis para longe do vosso rosto, não me priveis do vosso santo espírito.
Restitui-me
a alegria da salvação e sustenta-me com uma vontade generosa. Senhor abri, os
meus lábios a fim de que a minha boca anuncie os vossos louvores.
O Senhor nos
atenderá se no dia de hoje repetirmos de todo o coração, como uma oração: ó meu
Deus, criai em mim um coração que seja puro e renovai-me o espírito de firmeza.
padre
Rosevaldo Bahls
Este
é o momento favorável
Ao longo dos
tempos da vida da liturgia da Igreja os cristãos vão aprofundando sua fé e cada
vez mais mergulham sua história na trajetória de Jesus, o Filho dileto do Pai,
que depois de percorrer os caminhos do mundo, deu a vida pelos seus e o Pai o
ressuscitou dos mortos. Começamos hoje o fecundo e rico tempo da Quaresma.
Somos convidados a reviver em nossa vida e na vida da Igreja os passos dados
por um Povo que queria ser de Deus, que o Altíssimo havia escolhido para ser
seu Povo no meio das nações. Durante quarenta dias estaremos
questionando nossa maneira de pertencer a Cristo, estaremos nos embrenhando em
desertos não de pedra e de areia, mas de solidão, de reflexão e de retomada do
fôlego. Tudo começa quando, no primeiro domingo da Quaresma, somos levados por
Jesus pela mão para o deserto e, na sinceridade de nossa vida, nas
contingências da vida da Igreja de hoje, chegarmos à verdade no seguimento de
Cristo, nunca nos esquecendo que somente a verdade liberta. E a verdade é esta:
a Igreja quer fazer um esforço explícito de conversão. Jejum, penitência,
gestos concretos de arrependimento devem nos levar a ganhar força no combate
contra o mal. Dois refrões ecoam dentro de nós nesta quarta feira de cinzas:
Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar e Convertei-vos e credo no evangelho.
Lembrar de
nossa fragilidade e de nossa insignificância! Não somos masoquistas, não
andamos atrás de penitências, não inventamos sacrifícios! Mas temos a
mais serena certeza de que vagabundeamos por caminhos sem horizontes.
Temos medo
de morrer a nós mesmos. Não queremos perder o que temos e aferrando-nos a esse
pouco não podemos receber de Deus aquilo que nos plenificaria. Por detrás
de tudo está a certeza dolorida do pecado que mora em nós.
Não se trata
apenas de rasgar as vestes, de colocar cinza na cabeça, mas como diz o profeta
Joel, de rasgar o coração e voltarmo-nos para o Senhor. Não dá para
continuar na mesmice das missas e dos ritos, das reuniões e do encontros sem a
seiva vigorosa Evangelho. Será preciso uma imensa generosidade e tudo
fazer com discrição, sem alarido nem alarde. Nada será feito apenas diante dos
homens. Haveremos de partilhar tempo, dinheiro, dons. Mas sem tocar
trombeta. Ninguém precisa saber que estamos fazendo o bem. Mas o
bem precisa ser feito. Quando nos decidirmos a rezar não será
preciso ficar nos primeiros bancos, com braços abertos, com coisas vistosas.
Será altamente conveniente entrar no quarto e no silêncio rezar ao Pai
que tudo perscruta. Quando resolvermos jejuar ou fazer gestos de ascese e de penitência
sempre o faremos com discrição e verdade. Somos um povo que faz concordar os
gestos exteriores com a verdade do interior...
Assim,
Mateus nos traça um pequeno roteiro quaresmal: privar-se do supérfluo ou mesmo
do necessário para ajudar, rezar de verdade., colocar gestos concretos de
auto-dominio.
Este é o
tempo favorável... Entramos no retiro da Quaresma.
frei
Almir Ribeiro Guimarães
Toda
a criação está gemendo em dores de parto
Quando o
ritmo alegre do carnaval ainda ecoa na nossa mente e balança levemente nosso
corpo cansado somos interpelados por uma música diferente, em tom menor e
preocupante: "Nossa mãe terra, Senhor, geme de noite e de dia. Será de
parto esta dor? Ou simplesmente agonia?" Não se trata de um de uma
pergunta eivada de moralismos ou ameaças apocalípticas, mas de uma interrogação
baseada em dados científicos. A Campanha da Fraternidade faz da quaresma um
convite e uma possibilidade. É um convite a olhar responsavelmente para frente
e para além dos nossos interesses imediatos, a superar uma exclusiva e doentia
preocupação apenas conosco mesmos e com o que passou. Abre-se o tempo de
preparação da Páscoa do Senhor na páscoa da história, e esse tempo nos chama à
responsabilidade de tranformar as dores de agonia de um planeta doente em dores
de parto de uma nova ordem humana e ambiental.
"Voltai
para mim de todo coração!"
A tempo
quaresmal é positivamente um tempo de concentração e de busca do essencial.
Tantas vezes no correr do ano as urgências furam a fila e se colocam à frente
das essências. A Quaresma nos convida a voltar a Deus de todo o coração, a
vencer a tendência à fragmentação, a verter todas as nossas energias para o
único objetivo realmente decisivo: construir relações fraternas e uma sociedade
justa, comprometer-se responsavelmente com a luta contra o irresponsável
aquecimento global.
Assim, o
essencial da espiritualidade quaresmal não é fazer penitência para reparar os
abusos que teriam sido cometidos no revelion e no carnaval, mas exercitar a
convergência da mente, do coração e das mãos na intensa e exigente tarefa de
refazer as relações humanas, de superar os estreitos horizontes dos interesses
mesquinhos e imediatos e de abrir nosso olhar para o amplo horizonte da
preservação da vida do planeta.
"Rasgai
os vossos corações, não as roupas!"
A palavra
forte e direta do profeta Joel proclama a bondade e a compaixão de Deus, nos
desperta das ressacas da vida e chama a superar o velho costume de mudar apenas
as aparências. "Rasguem o coração e não as roupas! Voltem para Javé, o
Deus de vocês, pois ele é piedade e compaixão, lento para a cólera e cheio de
amor..." Nada de trocar apenas as máscaras, de renovar somente o
guarda-roupa. Novas roupas seriam capazes de esconder nosso descaso com a vida
do Planeta?
Joel aponta
para a necessidade de mudanças mais reais e radicais. Quando ele fala em rasgar
o coração não pretende centrar sua atenção nos sentimentos, mas interferir na
raiz das nossas decisões e ações. O profeta anuncia que os gestos externos de
arrependimento e de mudança não são suficientes. A verdadeira mudança se revela
nas opções, ações e relações. Palavras de efeito, discursos de ocasião,
campanhas que duram algumas semanas podem ser apenas cortinas de fumaça para
desviar a atenção.
A tradição
das comunidades cristãs privilegiou três ações que expressam a mudança de
direção e a convergência das forças próprias do tempo quaresmal: a esmola, a
oração e o jejum. Mas Jesus Cristo nos convoca à vigilância e à auto-crítica,
pois nem mesmo estas ações estão livres da falsificação e do faz-de-conta. Elas
podem ser motivadas apenas pela busca de aprovação, estima e reconhecimento. De
que serve abster-se de carne e fazer jejum num dia e mergulhar no consumismo
doentio nos outros?
"Quando
derdes esmola, não mandes tocar trombeta..."
Jesus não
despreza a costumeira prática da esmola, mas também não se deixa enganar por
ela. O que ele pede é que verifiquemos a motivação e a disposição com as quais
a fazemos. Ele levanta a questão do horizonte maior no qual esta prática se
insere. "Não mande tocar trombeta na frente... Que a sua esquerda não saiba
o que a sua direita faz." Uma esmola preocupada com publicidade beneficia
mais quem a faz do que quem está em necessidade. Seria como recitar um papel
num filme ou na novela.
O sentido
profundo da esmola é a solidariedade e a partilha com os pobres. Mais que dar
daquilo que sobra ou não faz falta, trata-se de partilhar aquilo que é fruto da
terra e do trabalho da humanidade e, por isso, não é nossa propriedade
absoluta. A partilha que se sacramentaliza na doação de bens ou no engajamento
pela vida do Planeta é um sinal externo do desejo voltar nosso coração
inteiramente para Deus e centrar nossa vida naquilo que é essencial e urgente.
"Quando
orardes, não sejais como os hipócritas..."
Em todas as
religiões a oração goza de um apreço privilegiado como expressão da fé e da
comunhão com a divindade, e no judaísmo que Jesus conheceu não era diferente.
Até hoje não faltam grupos e pregadores que insistem na necessidade de rezar
muito, de multiplicar terços, ladainhas, missas e promessas, como se isso
bastasse para estar de bem com Deus. Infelizmente, este tipo de insistência
acaba desviando a atenção de algo mais essencial e mais profundo.
No Evangelho
de hoje Jesus não insiste na quantidade mas na qualidade e na motivação da
oração. E começa criticando a postura das pessoas que rezam como se recitassem
um papel, denunciando o desejo de que os outros percebam que estão rezando. A
verdadeira oração não vai de mãos dadas com a busca de publicidade. A audiência
da verdadeira oração é feita de um só expectador, daquele que é habituado a
reconhecer quem não costuma ou não gosta de aparecer.
A oração é
abertura radical a Deus e à sua vontade, é superação dos estreitos limites dos
nossos gostos, preferências e necessidades. A oração se caracteriza pelo
diálogo íntimo e amigo com Aquele que quer nosso bem e que não descansa
enquanto todos os seus filhos e filhas não estejam bem. A oração quaresmal que
expressa nossa volta ao essencial precisa ser capaz de apresentar a Deus os
clamores e louvores de toda a criação, tanto suas dores de agonia como suas
dores de parto.
"Quando
jejuardes, não fiqueis de rosto triste..."
Depois de
passar um tempo um pouco exilado da nossa cultura, um certo tipo jejum voltou a
estar na moda e hoje recebe o nome de dieta. Mas quem faz dieta em geral está
muito preocupado consigo mesmo - com a saúde ou com a aparência - e pouco
interessado nos efeitos ambientais do consumismo predatório. No tempo de Jesus
muitas pessoas usavam o jejum, que era um sinal de arrependimento e mudança,
para impressionar os outros e aumentar sua influência sobre eles.
Para o
cristianismo, o jejum é um recurso pedagógico que possibilita a experiência da
vulnerabilidade e das carências humanas das quais normalmente fugimos e
proclama que os recursos materiais são limitados e não podem ser usados
irresponsavelmente. Assimilamos o mito da satisfação plena, da vida sem fim e
do poder que podemos exercer sobre tudo e sobre todos, e assim pretendemos
evitar tudo o que lembra carência, fragilidade e limite. O jejum desmascara
essa mentira.
Na
espiritualidade quaresmal o jejum está a serviço da renovação e da preservação
da vida em todas as suas expressões. E essa renovação se expressa na abertura
humilde e reverente a Deus, o único absoluto, na consciência da nossa
interdependência em relação aos nossos irmãos e irmãs, na relação de
interdependência com o Planeta e na partilha dos alimentos que deixamos de
consumir. Por isso, o jejum precisa ser acompanhado pelo perfume da alegria
estampada em todo o nosso ser.
"Em
nome de Cristo, vos suplicamos: reconciliai-vos com Deus!"
Reconciliar-se
com Deus significa reconhecê-lo como horizonte maior das nossas opções, como
Caminho que, mantendo-nos abertos e solidários, nos leva ao encontro dos irmãos
e irmãs. Reconciliar-se com Deus implica em voltar às nossas próprias raízes e
ali encontrar não apenas um eu, mas também um outro e uma realidade que é muito
mais que um meio ou algo material. Significa ouvir os clamores e perceber as
dores de um Planeta agredido de forma contínua e irresponsável.
Ó Espírito
de Deus, que sopras em todos os seres e falas nas palavras aparentemente
ininteligíveis dos seus clamores: penetra nossa mente e guia nossos passos
durante este tempo quaresmal e ensina-nos a cuidar da Terra como cuidamos de
nossa mãe. Ajuda-nos a transformar a esmola em solidariedade, a fazer do jejum
um ato de responsabilidade ambiental, a praticar a oração como uma peregrinação
para além dos estreitos limites do bem-estar da nossa geração. Assim seja!
padre
Itacir Brassiani msf
Com a
imposição das cinzas, inicia-se uma estação espiritual particularmente
relevante para todo cristão que quer se preparar dignamente para viver o
Mistério Pascal, quer dizer, a Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus.
Este tempo
vigoroso do Ano litúrgico se caracteriza pela mensagem bíblica que pode ser
resumida em uma palavra: ' matanoeiete', que quer dizer 'Convertei-vos'. Este
imperativo é proposto à mente dos fiéis mediante o austero rito da imposição
das cinzas, o qual, com as palavras 'Convertei-vos e crede no Evangelho' e com
a expressão 'Lembra-te de que és pó e para o pó voltarás', convida a todos a
refletir sobre o dever da conversão, recordando a inexorável caducidade e
efêmera fragilidade da vida humana, sujeita à morte.
A sugestiva
cerimônia das cinzas eleva nossas mentes à realidade eterna que não passa
jamais, a Deus; princípio e fim, alfa e ômega de nossa existência. A conversão
não é, com efeito, nada mais que um voltar a Deus, valorizando as realidades
terrenas sob a luz indefectível de sua verdade. Uma valorização que implica uma
consciência cada vez mais diáfana do fato de que estamos de passagem neste
fadigoso itinerário sobre a terra, e que nos impulsiona e estimula a trabalhar
até o final, a fim de que o Reino de Deus se instaure dentro de nós e triunfe
em sua justiça.
Sinônimo de
'conversão', é também a palavra 'penitência'...
Penitência
como mudança de mentalidade. Penitência como expressão de livre positivo
esforço no seguimento de Cristo.
Tradição
Na Igreja
primitiva, variava a duração da Quaresma, mas eventualmente começava seis
semanas (42 dias) antes da Páscoa.
Isto só dava
por resultado 36 dias de jejum (já que se excluem os domingos). No século VII
foram acrescentados quatro dias antes do primeiro domingo da Quaresma estabelecendo
os quarenta dias de jejum, para imitar o jejum de Cristo no deserto.
Era prática
comum em Roma que os penitentes começassem sua penitênica pública no primeiro
dia de Quaresma. Eles eram salpicados de cinzas, vestidos com saial e obrigados
a manter-se longe até que se reconciliassem com a Igreja na Quinta-feira Santa
ou a Quinta-feira antes da Páscoa. Quando estas práticas caíram em desuso (do
século VIII ao X) o início da temporada penitencial da Quaresma foi simbolizada
colocando cinzas nas cabeças de toda a congregação.
Hoje em dia
na Igreja, na Quarta-feira de Cinzas, o cristão recebe uma cruz na fronte com
as cinzas obtidas da queima das palmas usadas no Domingo de Ramos do ano
anterior. Esta tradição da Igreja ficou como um simples serviço em algumas
Igrejas protestantes como a anglicana e a luterana. A Igreja Ortodoxa começa a
quaresma a partir da segunda-feira anterior e não celebra a quarta-feira de
Cinzas.
Na
quarta-feira de cinzas, começa o tempo da quaresma, tempo de oração jejum,
penitência e esmola. Nesse período a quarta-feira de cinzas e a sexta-feira da
Paixão são dias de jejum e abstinência obrigatórios.
A
quaresma é o tempo litúrgico que precede e prepara a celebração da Páscoa, a
principal festa cristã. É tempo de escuta da Palavra de Deus, de conversão
pessoal, de recordação do batismo, de reconciliação com Deus e com os irmãos, e
de um recurso mais freqüente às "armas da penitência cristã": a oração,
o jejum e a esmola (cf. Mt. 6,1 - 6.16 - 18).
Embora
seja um tempo penitencial, a Quaresma não é um tempo triste e depressivo. É
ocasião de sermos mais dóceis à graça de Deus para derrotarmos o homem velho
que atua em nós; ocasião de renunciarmos ao pecado que habita nos nossos
corações e de nos afastarmos de tudo o que nos separa da vontade de Deus e, por
conseguinte, da nossa verdadeira felicidade.
Desde
os princípios do Cristianismo, os cristãos procuraram intensificar a sua vida
interior, mediante a oração e a penitência, para participarem com mais
plenitude e alegria do tríduo pascal, "memória da Paixão, Morte e
Ressurreição do Senhor, coração do mistério de nossa salvação", nas
palavras do papa Bento XVI. Existem indícios de que, já em fins do século II, a
Páscoa era precedida por alguns dias de rigorosas penitências da parte dos
fiéis. De acordo com Eusébio de Cesaréia (ca. 332), autor de uma das primeiras
histórias eclesiásticas de que se tem notícia, a quaresma foi estabelecida
oficialmente para toda a Igreja no século IV.
A
sua duração (da quarta-feira de cinzas ao domingo de
ramos) inspira-se na simbologia do número quarenta na tradição da Sagrada
Escritura: quarenta foram os dias que durou o dilúvio, quarenta foram os anos
que o povo hebreu passou no deserto, quarenta dias Moisés e Elias passaram nas
montanhas. Há ainda muitas outras passagens da Bíblia em que aparece o número
quarenta, e todas estão sempre associadas à idéia de tempo de penitência.
Durante a Quaresma, a Igreja "quer convidar-nos sobretudo a reviver com
Jesus os quarenta dias que passou no deserto, rezando e jejuando, antes de
empreender sua missão pública" (papa Bento XVI).
Como
viver a quaresma
Durante
este tempo especial de purificação, a Igreja propõe-nos uma série de meios concretos
que nos ajudam a viver a dinâmica quaresmal e que já mencionamos acima: a
oração, o jejum e a esmola.
Em
primeiro lugar, a oração, condição indispensável para o encontro com Deus. É no
diálogo íntimo com o Senhor que o cristão deixa a graça divina penetrar no seu
coração e, como a Virgem Maria, se abre à ação do Espírito com uma resposta
livre e generosa (cf. Lc. 1,38). Na quaresma, devemos meditar a Palavra de Deus
com mais profundidade e é conveniente levar à oração temas relacionados com a
Paixão de Cristo e os próprios relatos evangélicos; também é altamente
recomendável a devoção da Via Sacra. Se pudermos (e quase sempre
podemos), façamos o esforço de freqüentar mais vezes os Sacramentos,
especialmente o da Confissão. Não nos esqueçamos de que a Igreja também nos
pede neste tempo litúrgico que rezemos mais pela conversão de todas as almas
(principalmente daqueles que nos são mais próximos).
O
jejum e as demais mortificações que podemos fazer nas circunstâncias ordinárias
da nossa vida também constituem um meio concreto de viver o espírito de
quaresma. Não devemos procurar fazer grandes penitências. O que, sim, podemos
fazer é oferecer a Deus os incidentes cotidianos que nos incomodam, aceitando
com alegria os contratempos que podem apresentar-se: o trânsito lento, as
escadas que parecem intermináveis, a chuva inoportuna. Além disso, podemos
renunciar às nossas pequenas comodidades - uma sobremesa de que gostamos mais,
um assento melhor na condução, um programa de televisão - por amor de Deus. Vale
lembrar que a Quarta-feira de cinzas e a sexta-feira da Paixão são dias em que
a Igreja pede que todos os fiéis jejuem e abstenham-se de carne.
Por
fim, dentre as práticas quaresmais que a Igreja nos propõe, o exercício da
caridade ocupa um lugar especial. É o que nos recorda são Leão Magno:
"Estes dias da quaresma convidam-nos de maneira premente ao exercício da
caridade; se queremos chegar à Páscoa santificados no nosso ser, devemos pôr um
interesse especialíssimo em adquirir esta virtude, que contém em si todas as
outras e cobre uma multidão de pecados".
A
caridade deve ser vivida de maneira especial com aqueles que temos mais perto
de nós, no ambiente concreto em que nos movemos. Trata-se de sorrir àqueles com
quem não nos damos muito bem (talvez por nossa culpa), de aumentar o espírito
de serviço, de convidar um amigo a fazer uma visita a uma família pobre, etc.
Principalmente, pode ser uma oportunidade para aproximarmos de Deus os nossos
familiares e amigos: esse é o maior bem que lhes podemos fazer.
Também
devemos ter em conta que a quaresma é um tempo propício para lutarmos contra os
nossos defeitos mais arraigados. Podemos aproveitar esta época litúrgica para
crescer em conhecimento próprio, fazendo um exame mais aprofundado da nossa
vida para descobrir o que nos aproxima ou afasta de Deus. Depois, marcaremos
metas palpáveis de melhora e nos esforçaremos por atingi-las. Se alguma vez
falharmos, recorreremos com humildade e contrição ao sacramento da Penitência e
recomeçaremos com alegria. Se fizermos a nossa parte, que é lutar sempre
confiantes na ajuda de Deus, Ele não deixará de nos conceder as graças
necessárias para uma verdadeira conversão.
Guardai-vos
de fazer a vossa esmola diante dos homens,
para
serdes vistos por eles
Hoje
começamos o nosso recorrido à Páscoa, e o Evangelho nos lembra os deveres
fundamentais do cristão, não só como preparação a um tempo litúrgico, mas em
preparação à Páscoa Eterna: «Cuidado! não pratiqueis vossa justiça na frente
dos outros, só para serdes notados. De outra forma, não recebereis recompensa
do vosso Pai que está nos céus» (Mt. 6,1). A justiça da que Jesus nos fala
consiste em viver conforme aos princípios evangélicos, sem esquecer que «Eu vos
digo: Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não
entrareis no Reino dos Céus» (Mt. 5,20).
A justiça
nos leva ao amor, manifestado na esmola e em obras de misericórdia: «Tu, porém,
quando deres esmola, não saiba tua mão esquerda o que faz a direita» (Mt. 6,3).
Não é que se devam ocultar as obras boas, mas que não se deve pensar em elogio
humano ao fazê-lo, sem desejar nenhum outro bem superior e celestial. Em outras
palavras, devo dar esmola de tal modo que nem eu tenha a sensação de estar
fazendo uma boa ação, que merece uma recompensa por parte de Deus e elogio por
parte dos homens.
Bento XVI
insistiu em que socorrer aos necessitados é um dever de justiça, mesmo antes
que um ato de caridade: «A caridade supera a justiça (…), mas nunca existe sem
a justiça, que induz a dar ao outro o que é "dele", o que lhe
pertence em razão de seu ser e do seu agir». Não devemos esquecer que não somos
proprietários absolutos dos bens que possuímos, e sim administradores. Cristo
nos ensinou que a autêntica caridade é aquela que não se limita a
"dar" esmola, e sim que o leva a "dar" a própria pessoa, a
oferecer-se a Deus como culto espiritual (cf. Rm. 12,1) esse seria o verdadeiro
gesto de justiça e caridade cristã, «de modo que tua esmola fique escondida. E
o teu Pai, que vê no escondido, te dará a recompensa» (Mt. 6,4).
d.
Luis A. Gala Rodríguez
Hoje
iniciamos a Quaresma: «É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação»
(2Cor. 6,2). A imposição da cinza - que devemos receber - é acompanhada por uma
destas duas fórmulas. A antiga: «Lembre-se de que és pó e pó serás»; e a que
introduziu a liturgia renovada do Concilio: «Converta-se e creia no Evangelho».
Ambas as fórmulas são um convite a contemplar de uma maneira diferente -
normalmente tão superficial - nossa vida. O papa são Clemente I nos lembra que
«o Senhor quer que todos os que o amam se convertam».
No
Evangelho, Jesus pede a pratica da esmola, o jejum e a oração longe de toda
hipocrisia: «Por isso, quando você der esmola, não mande tocar trombeta na
frente, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados
pelos homens. Eu garanto a vocês: eles já receberam a recompensa» (Mt. 6,2). Os
hipócritas, energicamente denunciados por Jesus Cristo, se caracterizam pela
falsidade de seu coração. Mas, Jesus adverte hoje não só da hipocrisia
subjetiva senão também da objetiva: cumprir, inclusive de boa fé, tudo o que
manda a Lei de Deus e a Escritura Santa, mas fazendo de maneira que fique na
mera prática exterior, sem a correspondente conversão interior.
Então, a
esmola reduzida - à “gorjeta” - deixa de ser um ato fraternal e se reduz a um
gesto tranqüilizador que não muda a maneira de ver o irmão, nem faz sentir a
caridade de prestar-lhe a atenção que ele merece. O jejum, por outro lado, fica
limitado ao cumprimento formal, que já não lembra em nenhum momento a
necessidade de moderar nosso consumismo compulsivo, nem a necessidade que temos
de ser curados da “bulimia espiritual”. Finalmente, a oração - reduzida a
estéril monólogo - não chega a ser autêntica abertura espiritual, colóquio
íntimo com o Pai e escuta atenta do Evangelho do Filho.
A religião
dos hipócritas é una religião triste, legalista, moralista, de uma grande
pobreza de espírito. Pelo contrario, a Quaresma cristã é o convite que cada ano
nos faz a Igreja a um aprofundamento interior, a una conversão exigente, a una
penitência humilde, para que dando os frutos pertencentes que o Senhor espera
de nós, vivamos com a máxima plenitude de alegria e o gozo espiritual da
Páscoa.
d.
Manel Valls i Serra
A
recompensa divina
Todo gesto
de piedade visa ser agradável a Deus. Nele, o ser humano busca manifestar o
mais íntimo de si mesmo, na esperança do reconhecimento divino. Realiza o que
lhe parece corresponder aos anseios do Pai. Transforma, em ação, seus sentimentos
profundos de amor e gratidão.
A esmola, a
oração e o jejum são expressões excelentes de piedade, por parte de quem
procura viver uma intensa vida de comunhão. Elas supõem a capacidade de ir ao
encontro do irmão carente, a quem se deve socorrer; transcender os próprios
limites e viver em comunhão com o Senhor; ordenar as paixões que impedem o ser
humano de ser solidário e fraterno. A piedade é, pois, vivida como comunhão.
A recompensa
divina advém, na medida em que a piedade é praticada na humildade e no
escondimento, prescindindo do reconhecimento humano. O Pai vê e reconhece o
valor do gesto humano, quando praticado com sinceridade de coração. A busca
consciente de louvor por parte dos outros mina, pela raiz, os gestos de piedade
e lhes desvirtua o sentido, impedindo-os de atingir seu objetivo.
Somos
instruídos a vivenciar nossa piedade, de maneira secreta. Só assim, quem vê o
que é feito em segredo, dar-nos-á a recompensa esperada.
padre
Jaldemir Vitório
Quarenta
dias antes da Páscoa, a Igreja abre solenemente o tempo de penitência chamado
Quaresma, em preparação para a celebração da Páscoa: é a quarta-feira de
cinzas. As cinzas, preparadas pela queima de palmas usadas na procissão de
Ramos do ano anterior, nos lembram o Cristo vitorioso sobre a morte. Se os
cristãos aceitam reconhecer sua condição de criaturas mortais e transformar-se
em pó, ou seja, passar pela experiência da morte, a exemplo de Cristo, pela
renúncia de si mesmos, participarão também da vida que ressurge das cinzas. A
fé em Jesus Cristo faz com que a vida renasça das cinzas. Jesus faz brotar vida
onde o ser humano reconhece sua condição de criatura necessitada da ação de
Deus. Isso é entrar na atitude pascal. Essa Páscoa se vive na conversão, por
meio dos exercícios da oração, do jejum e da caridade: oração que sustenta o
diálogo permanente e amoroso com Deus; caridade, sinal de nossa solidariedade e
abertura aos irmãos; e jejum, aquilo que devemos deixar, aquilo a que devemos
renunciar ou nos desapegar.
Tudo isso
como expressão de uma volta real e profunda ao Senhor. Ele nos convida a
voltarmos a Ele de todo o coração, a “rasgar o coração e não as roupas”, a
confiar em sua misericórdia. O nosso esforço e a nossa resposta a esse chamado
são expressões de abertura e adesão à sua aliança. Que mudanças devemos
realizar em nossa vida e na vida da comunidade, para bem celebrarmos nossa
Páscoa na Páscoa do Senhor Jesus? Que compromisso o Senhor nos chama a assumir
a partir da Campanha da Fraternidade, que nos convida à solidariedade na busca
da conversão e do reconhecimento do único e verdadeiro Deus que devemos servir?
Nossa
Quaresma começa hoje fazendo ecoar novamente em nossos ouvidos estas
inquietantes palavras do profeta Joel: “rasgai vossos corações e não vossas
vestes!”. O jejum proposto pelo profeta não se reduz a deixar de consumir
determinados alimentos, ao mesmo tempo que se gasta até mais com outros
produtos, às vezes muito mais caros, como se vê hoje em dia. O jejum que ele
exige, em nome de Deus, apela para uma conversão profunda, para uma volta do
povo à Deus. O jejum é um convite a vivermos toda essa Quaresma em atitude
permanente de conversão. Nosso jejum apela para a solidariedade com os mais
pobres. Para exemplificar isso Jesus tomou três práticas consideradas bem
próprias de pessoas religiosas: o jejum, a esmola e a oração. São gestos que
marcam a nossa experiência de Deus, mas podem ser pura exterioridade, sem
nenhuma ligação com o nosso coração. Quando jejuo ninguém precisa ficar
sabendo, a não ser o próprio Deus que vê com que intenção estou fazendo isso, a
esmola, porém, exige que eu me encontre com o irmão necessitado. Nossa
conversão significa, portanto, abrir os olhos da consciência para as diversas
situações de privação pelas quais passam muitos de nossos irmãos entre os quais
os doentes como nos propõe a Campanha da Fraternidade deste ano. O jejum
quaresmal deve nos ajudar a “sentir na própria carne” um pouco do sofrimento
por que passam esses irmãos e assim sermos mais solidários na construção de um
mundo melhor, onde não haja injustiça, marginalização, abandono, miséria, nem
fome. Tudo isso são marcas de desprezo pelo ser humano que impera em muitos
corações.
Jejum sem
solidariedade não passa de um simples ritualismo sem sentido. O tempo de
conversão é agora! Devemos aproveitar a ocasião que Deus está nos oferecendo,
pois Ele mesmo vem em nosso auxílio para nos tornar aptos a fazer o bem, aquilo
que é necessário e assim cumprir a sua vontade, realizar o seu projeto.
Conversão
A quaresma,
que se inicia hoje, é um tempo privilegiado de conversão. É o tempo de
firmarmos cada vez mais nossa opção pelo seguimento de Jesus, abandonando os
apelos e seduções do mundo sob controle dos ricos poderosos.
Encontramos
a origem da quaresma na tradição sacrifical do Primeiro Testamento, segundo a
qual a reconciliação com Deus se faz pelo sofrimento. Contudo, a essência da
conversão é a mudança de vida, vivendo o amor com os objetivos fundamentais da
fraternidade, da justiça, da solidariedade, a serviço da vida. As piedosas
práticas dos chefes de Israel, a esmola, a oração, e o jejum, não iam além de
aparências. O jejum e a esmola significam abandonar o consumo do supérfluo e
partilhar os bens com os necessitados e carentes. A oração agradável a Deus é
aquela que move ao cumprimento da vontade do Pai, que quer vida plena para
todos.
José
Raimundo Oliva
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