UMA PRESENÇA QUE SE MOVE EM NOSSO
INTERIOR...
“...a ele viremos e nele estabeleceremos
morada” (Jo. 14,23)
6º Dom. Páscoa
Tudo está admiravelmente condensado e
expresso nesta frase com a qual se inicia o evangelho do 6º Dom. da Páscoa:
“viremos a ele e faremos nele nossa morada”. O ser humano está habitado por Deus, no sentido mais profundo que podemos
imaginar.
A chamada “inabitação” não pode ser
entendida como um agregado que se daria na pessoa, equiparável ao que ocorre em
uma casa desabitada quando alguém chega para morar nela. Por essa razão, não se
pode entender as palavras colocadas na boca de Jesus como se tratasse de uma
condição: “só quando alguém guarda minha palavra, será habitado e amado por
Deus”.
A partir das palavras de Jesus, é
preciso saborear todo o sentido da “inabitação trinitária”. Deus Trindade
abraça tudo e se expressa em toda a realidade; habita tudo e em tudo se
manifesta; envolve tudo e em tudo está presente. “Deus presente em todas as
coisas e todas as coisas em Deus” (S. Inácio).
O ritmo frenético e estressante do
contexto atual, e, sobretudo, o culto à novidade, ao efêmero, ao superficial,
impedem recuperar a dimensão da interioridade em nossa vida diária.
A expressão “viver a vida” não é exaltar
uma vitalidade superficial, muitas vezes frívola, senão viver a vida em
profundidade. Diante da sociedade que promove um estilo de vida baseado na
superficialidade, na aparência e no prestígio, o cristão procura ser claramente
contra-cultural, vivendo uma espiritualidade da profundidade.
É próprio do ser humano mergulhar e
experimentar sua profundidade. Auscultando a si mesmo, percebe que brotam de
seu “eu profundo” apelos de compaixão, de amorização e de identificação com os
outros e com o grande Outro (Deus). Dá-se conta de uma Presença que sempre o
acompanha, de um Centro ao redor do qual se organiza a vida interior e a partir
do qual se elaboram os grandes sonhos e as significações últimas da vida.
Em nosso coração há sempre algum
movimento profundo que é manifestação da ação de Deus no mais íntimo de cada
um. S. Agostinho cunhará a expressão de que Deus é “íntimo, intimo meu”, mais íntimo que nossa própria intimidade.
Esta presença é fonte de vida espiritual, uma vida que pulsa dentro de nós e
flui com diferentes “moções” que nos fazem sentir perto d’Aquele que já está
perto.
Quem toma consciência de sua identidade
profunda, descobre-se habitado e amado pelo Mistério e não pode fazer outra
coisa senão amar e experimentar a comunhão com todos. Na linguagem do quarto
evangelho, Deus é o “centro” último do nosso interior, o que constitui nossa
identidade mais profunda.
Não se trata, portanto, de que Deus
habite unicamente naqueles que cumprem a palavra de Jesus, num retorno à
religião dos méritos e das recompensas. Deus habita já todos os seres: nada
poderia existir “fora” d’Ele. Tudo
é morada de Deus.
Segundo S. Inácio “Deus habita nas
criaturas: nos elementos dando o ser; nas plantas, a vida vegetativa; nos
animais, a vida sensitiva; nas pessoas, a vida intelectiva. Do mesmo modo em
mim, dando-me o ser, o viver, o sentir e o entender. E também fazendo de mim o
seu templo” (EE. 235).
Tudo
está inundado de Deus; tudo é sagrado, nada é profano.
Deus não permanece exterior à sua
Criação, mas habita no meio dela. As “criaturas” são o que são devido à
presença de Deus nelas. O valor e o significado últimos de todas as coisas
provém não delas mesmas, mas da presença de Deus em seu interior.
Nesse sentido, a oração cristã facilita perceber as
ressonâncias interiores do dia-a-dia, para vivê-las a partir do mais
profundo de nós mesmos, pois o santuário da presença de Deus está nesse espaço
de intimidade entre a criatura e o Criador.
A
oração,
como “pausa diária”, constitui-se um tempo de pacificação, de integração
espiritual, precisamente para“ler”
a vida com os olhos de Deus – “por onde passa meu Senhor” -,
dando especial atenção aos movimentos interiores suscitados pela presença e
agir do Senhor. É discernir as “moções” de Deus que nos fala ao coração pelos
acontecimentos, é retificação do rumo para o necessário crescimento humano e
cristão. Trata-se de um tempo privilegiado para fazer mais profunda nossa vida
cotidiana.
Esta nossa busca começa no retorno ao
interior, onde o Senhor nos habita e nos move. Podemos então afirmar que a busca de Deus e o encontro com Ele, a partir
de Sua iniciativa, coincidem com a busca e o encontro de si mesmo, de modo que
buscar a Deus é buscar-se a si mesmo, na própria interioridade.
A expressão de Pascal de que “o ser
humano supera infinitamente o ser humano” resume bem esta vivência da Trindade
que nos habita, nos move e nos faz transbordar em nossa mesma intimidade.
Podemos entrar dentro de nós mesmos
porque em nós está a dimensão de eternidade, a dimensão “divina” que nos situa
acima do vai-e-vém das coisas, acima do tempo e da contingência, embora
estejamos enraizados nela e caminhemos sobre a faixa da história fugaz. Nós nos
movemos, pois, entre transcendência e história, entre contingência e
eternidade.
É no “substrato humano” que o mistério
da Trindade marca presença e age. É na “natureza humana” que Deus constrói a
Sua Tenda e, na Sua ternura, abraça a pessoa no seu todo; abrange todas as
áreas da vida.
Deus se serve das mediações humanas para
revelar-se e falar ao coração. Ele quer assumir o humano na sua totalidade. Ele
deseja ser o responsável pela “terra sagrada” da vida humana.
Da parte de cada pessoa, Ele pede,
apenas, para deixá-Lo trabalhar, limpar, semear, fazer crescer e colher os
frutos.A pessoa é solicitada para que
deixe espaço aberto e livre ao plano da ação de Deus.
É nas entranhas mais profundas do ser
que Deus “toca” com a Sua bondade, ternura e misericórdia. Esta experiência
gera compromisso de viver a bondade, a ternura e a misericórdia na vida e na
missão.
Texto
bíblico: Jo. 14,23-29
Na
oração: Na oração, mergulhamos em Deus e libertamos em nós profundidades
que desconhecemos. Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela
deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do
nosso ser. Descobriremos regiões de conhecimento e de amor ainda inexploradas,
que nascerão para a vida sob a ação do olhar de Deus. Deus é a verdadeira fonte
do nosso ser, mais próxima de nós do que nós de nós mesmos.
Pe.
Adroaldo Palaoro sj
Coordenador do Centro de Espiritualidade
Inaciana – CEI
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