Comentários Prof.Fernando*
Domingo 27 – 12 – 2015
Crescia (em estatura, sabedoria e graça) diante de Deus e
dos humanos.
(cf. Lucas 2,52)
O sagrado na família
·
Embora a tradição protestante
denomine este dia como Primeiro Domingo
depois do Natal, a leitura do Evangelho é a mesma (cf.Lecionário Comum:
Lucas 2,40ss) em que se conta a aflição de José e Maria procurando o filho
(Jesus já com cerca de 12 anos) numa peregrinação anual a Jerusalém. É ocasião
para nossa meditação sobre a Família em suas dificuldades e maravilhas. A
liturgia católica romana fixou em 1921 a celebração da Sagrada Família que seguia à festa da Epifania (mais conhecida como Reis).
Depois do Concílio Vaticano II (out1962-dez65) a reforma litúrgica a Sagrada Família é lembrada no primeiro
domingo depois do Natal.
Revelação divina na (“banalidade”
da) família
·
De fato o Natal é festividade
muito ligada à vida familiar, porém a perspectiva do texto hoje está centrada
principalmente na revelação de Jesus Cristo como Filho de Deus e não tanto na
sua família humana. Aprofundamos o Natal que é o começo do Mistério da Encarnação. Sempre me chamou a atenção o fato de que
Jesus ter vivido no anonimato de sua família, seu trabalho e sua minúscula
aldeia do interior, durante cerca de 30 anos, ao passo que, em menos de 3 anos,
percorreu seu país e a Judeia anunciando o Reino,
a “Boa Notícia” (=ev-angelho) de qual era possível realizar a Utopia: o
Projeto do Criador para todo ser humano. Durou pouco tempo a fala e o bem que
fazia Jesus de Nazaré pois logo o ódio dos inimigos o levou à injusta sentença
de morte obtida numa farsa de “julgamento” manipulado.
·
Essa diferença entre o tempo da
“vida pública” (cerca de 3 anos) e o da vida comum (uns 30) – como a de milhões
de pessoas em qualquer cultura – é um contraste que, por si só, encerra uma
mensagem. Trata-se da importância do quotidiano e das atividades humanas,
“comuns”. O importante não é o tempo dedicado a isso ou aquilo, nem é o
decisivo (para que a vida humana tenha valor) que a história de cada um seja
marcada pela fama e grandes feitos. No meu tempo na escola a gente “decorava”
História, geralmente memorizando datas e nomes dos reis e suas batalhas, de
governantes e generais e suas façanhas incríveis. Na verdade um país, como o
Brasil, por exemplo, foi construído não só por reis portugueses, grandes
navegadores, famosos donos das sesmarias, imperadores e presidentes. Tudo o que
somos e temos deve-se ao trabalho de milhões que viveram no anonimato na roça e
nas cidades. Os filhos e filhas das nações indígenas. Os condenados e bandidos,
exilados de Portugal. Os escravos oriundos de nações africanas. Os imigrantes
europeus, libaneses, japoneses, etc.
O “Sagrado” na família é anterior à sacralização da
família
·
Em
fins do século 19 a Igreja católica romana ainda tinha grandes dificuldades
para entender a Modernidade que, além de outras coisas, trouxera um naturalismo
derivado do progresso científico. Isso, é verdade, também contribuiu para a descrença
na dimensão “sobrenatural”, como se dizia, do ser humano. Também o ateísmo
crescene na Europa assustava as lideranças do catolicismo e, principalmente o
afastamento – em relação à hegemonia eclesiástica – da política e do direito. Alguns
Estados aprovaram o casamento civil que podia substituir o religioso. É nesse
contexto que se pensava na festa da Sagrada Família para que os personagens da
família de Jesus fossem o modelo ideal da célula matriz da sociedade. Para Roma
a valorização da família era pensada como instituição cristã, sobre o fundamento
da fé cristã e das doutrinas eclesiásticas.
·
Hoje
as sociedades ocidentais (para não falar de outras culturas no mundo) encontram
novos e mais complexos problemas para a comunidade familiar e para os
indivíduos. Neste mundo pluralista, de sociedades multiculturais, certamente é
mais urgente a questão dos valores humanos esquecidos do que a questão da
família cristã. A própria introdução desta Festa no calendário litúrgico
diminuiu a intensidade do tema principal de Lucas (a manifestação de Jesus ao
mundo em continuidade com os “ouvintes da Palavra” anteriores, os pastores e os
magos) na figura dos Sábios da religião de Israel em Jerusalém. A festa, se
vista superficialmente, corre o risco de diluir a Manifestação e comunicação de
Jesus ao mundo para colocar em maior evidência (ainda que piedosa e verdadeira)
a família histórica de Jesus.
·
O
núcleo de preocupações diante da Modernidade que inquietava a hierarquia
católica em finas do século 19 e início do século 20, desloca-se atualmente
para a compaixão que devemos ter com os órfãos da guerra no oriente, com os
sequestrados pelo terrorismo em países africanos, com os torturados e suas
famílias perseguidas na área dominada pelo Daesh. Fala-se muito em decadência e
destruição da família a partir de debates morais sobre ideologias, novas
influências culturais e conflitos entre gerações. É verdade que problemas
concretos atingem as famílias desde a fertilidade e o sexo, até as separações
de casais e educação das crianças. Mas pouco se fala – menos ainda se conhece –
que caminhos seguir e quais seriam as formas de ajudar – diante de novas formas
de destruição de famílias (e até etnias e povos inteiros). A destruição ocorre
em regiões que não são predominantemente cristãs, mas também no Ocidente. Basta
lembrar emigração em massa e a outra
mobilidade humana gigantesca causada pelas guerras e perseguições políticas. Em
nosso país as famílias são destruídas menos por ideologias e novos
comportamentos sociais, e mais por balas perdidas e assassinato de policiais,
por distribuição de entorpecentes em bailes populares e pelo comércio
internacional de pessoas, de armas e de drogas, naturais e sintéticas. Famílias
são destruídas pela carência de atendimento à saúde e pela incapacidade do
poder público para atender aos mais necessitados. Crescem sobre as famílias,
além do desemprego: a ameaça das milícias no bairro, dos comandos dentro e fora
dos presídios, o medo do assalto e morte praticados nas esquinas e nos
engarrafamentos.
Meu filho, que nos fizeste? Teu pai e eu andávamos à tua
procura, cheios de aflição”.
·
O
texto de Lucas mostra que aflição e sofrimento presentes também na Sagrada Família. Na figura da perda e
reencontro de Jesus Menino no templo, prefigura-se a tensão que viverá o Mestre
de Nazaré, da contínua objeção à hipocrisia de fariseus e líderes até o
sofrimento no Horto e o “por quê me
abandonaste?” na Cruz. Não adianta fazer a pregação de um modelo ideal de
família bem comportada se esquecermos as tensões e conflitos presentes na busca
em “ocupar-se nas coisas do Pai”. E
fazer a vontade do Pai é ajudar na construção de seu Projeto de liberdade para
o ser humano e solidariedade entre os seres humanos.
·
Seguir
o Modelo: crescer não só em tamanho, segurança, educação e saúde, mas, acima de
tudo, “em sabedoria e graça, diante de
Deus e diante dos seres humanos” (cf. Lucas 2,52).
Nenhum comentário:
Postar um comentário