Uma só carne...
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7 Outubro
2018
ANO B
27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Tema do 27º Domingo do Tempo Comum
As leituras do 27º Domingo do Tempo Comum
apresentam, como tema principal, o projecto ideal de Deus para o homem e para a
mulher: formar uma comunidade de amor, estável e indissolúvel, que os ajude
mutuamente a realizarem-se e a serem felizes. Esse amor, feito doação e
entrega, será para o mundo um reflexo do amor de Deus.
A primeira leitura diz-nos que Deus criou o homem e a mulher para se
completarem, para se ajudarem, para se amarem. Unidos pelo amor, o homem e a
mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma só carne” implica viverem em comunhão
total um com o outro, dando-se um ao outro, partilhando a vida um com o outro,
unidos por um amor que é mais forte do que qualquer outro vínculo.
No Evangelho, Jesus, confrontado com a Lei judaica do divórcio, reafirma o
projecto ideal de Deus para o homem e para a mulher: eles foram chamados a
formar uma comunidade estável e indissolúvel de amor, de partilha e de doação.
A separação não está prevista no projecto ideal de Deus, pois Deus não
considera um amor que não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso
num compromisso indissolúvel, respeita o projecto primordial de Deus para o
homem e para a mulher.
A segunda leitura lembra-nos a “qualidade” do amor de Deus pelos homens… Deus
amou de tal forma os homens que enviou ao mundo o seu Filho único “em proveito
de todos”. Jesus, o Filho, solidarizou-Se com os homens, partilhou a debilidade
dos homens e, cumprindo o projecto do Pai, aceitou morrer na cruz para dizer
aos homens que a vida verdadeira está no amor que se dá até às últimas
consequências. Ligando o texto da Carta aos Hebreus com o tema principal da
liturgia deste domingo, podemos dizer que o casal cristão deve testemunhar, com
a sua doação sem limites e com a sua entrega total, o amor de Deus pela humanidade.
LEITURA I – Gn 2,18-24
Leitura do Livro do Génesis
Disse o Senhor Deus:
«Não é bom que o homem esteja só:
vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele».
Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra
todos os animais do campo e todas as aves do céu,
conduziu-os até junto do homem,
para ver como ele os chamaria,
a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos
pelo nome que o homem lhes desse.
O homem chamou pelos seus nomes
todos os animais domésticos, todas as aves do céu
e todos os animais do campo.
Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele.
Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem
um sono profundo
e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela,
fazendo crescer a carne em seu lugar.
Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher
e apresentou-a ao homem.
Ao vê-la, o homem exclamou:
«Esta é realmente osso dos meus ossos e a minha carne.
Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem».
Por isso, o homem deixará pai e mãe,
para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne.
AMBIENTE
O texto de Gn 2,4b-3,24 – conhecido como
relato jahwista da criação – é, de acordo com a maioria dos comentadores, um
texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão.
Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece ser obra de um
catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e
fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem
jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade
do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como
o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da vida e do
homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e não de um
tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da vida.
Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas
utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por
exemplo, a formação do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre
nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os
símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo
enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da
fé de Israel. Ou seja: a linguagem e a apresentação literária das narrações
bíblicas da criação apresentam paralelos significativos com os mitos de origem
dos povos da zona do Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo
o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projecto de Deus
– são muito diferentes.
O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no “jardim do
Éden”, um espaço ideal onde Deus colocou o homem que criou, um ambiente de
felicidade material onde todas as exigências da vida humana estavam
satisfeitas. É um lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem
sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, o ideia de felicidade seria um
lugar com muita água, um clima de frescura, um ambiente de árvores e de verdura
abundante). O homem tinha, então, tudo para ser feliz? Ainda não. Na
perspectiva do catequista jahwista, o homem não estava plenamente realizado,
pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem
não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É esse problema
que Deus, com solicitude e amor, vai resolver…
MENSAGEM
Depois de criar o homem e de o colocar no
“jardim” da felicidade, Deus constatou a solidão do homem e quis dar-lhe
solução. Como?
Num primeiro momento, Deus fez desfilar diante do homem “todos os animais do
campo e todas as aves do céu”, a fim de que o homem os chamasse “pelos seus
nomes” (vers. 19). Segundo as ideias vigentes no Médio Oriente antigo, o facto
de “dar um nome” era, antes de mais, um acto de domínio e de posse. Por outro
lado, o facto de Deus ter trazido os animais para que o homem lhes desse um
nome era, na perspectiva do catequista jahwista, o reconhecimento por parte de
Deus da autonomia do homem e a associação do homem à obra criadora e ordenadora
de Deus. A autoridade sobre os outros seres criados e a associação do homem à
obra criadora de Deus responderá ao desejo de felicidade completa que o homem
sente e resolverá o problema da sua solidão? Não. O homem não encontrou, nesse
mundo animal que Deus lhe confiou, “uma auxiliar semelhante a ele” (vers. 20).
Por muito rico e desafiador que fosse esse mundo novo que lhe foi apresentado,
o homem não encontrou aí a ajuda e o complemento que esperava. Para que o homem
se realize completamente, Deus vai intervir de novo.
A nova acção de Deus começa com um “sono profundo” do homem. Depois, Deus,
actuando como um hábil cirurgião, tirou parte do corpo do homem (o texto fala
da “zela’“, que se tem traduzido como “costela”; contudo, a palavra pode
significar “lado” ou “costado”) e com ela fez a mulher (vers. 21-22). Porquê o
“sono profundo” do homem”? Porque, de acordo com a concepção do autor jahwista,
criar era segredo de Deus e o homem não podia testemunhar esse momento solene e
misterioso; restava-lhe admirar a criação de Deus e adorá-l’O pelas suas obras
admiráveis… Depois de ter “construído” a mulher, Jahwéh acompanha-a à presença
do homem. A mulher é aqui apresentada como uma noiva conduzida à presença do
noivo e Deus como o “padrinho” desse noivado. O homem, desperto do “sono
profundo”, acolhe a mulher com um grito de alegria e reconhece-a como a
companhia que lhe fazia falta, o seu complemento, o seu outro eu: “Esta é
realmente osso dos meus ossos e carne da minha carne” (vers. 23a). O homem
(vers. 23b) dá à sua companheira o nome de “mulher” (em hebraico: ‘ishah)
porque foi tirada do homem (em hebraico: ‘ish). A proximidade das duas palavras
sugere a proximidade entre o homem e a mulher, a sua igualdade fundamental em
dignidade, a sua complementaridade, o seu parentesco.
O nosso texto termina com um comentário que não é de Deus, nem do homem, nem da
mulher, mas do catequista jahwista: “por isso, o homem deixará pai e mãe para
se unir à sua esposa, e os dois serão uma só carne” (vers. 24). Este comentário
pretende ser a resposta a uma questão bem concreta: de onde vem essa força
poderosa que é o amor e que é mais forte do que o vínculo que nos liga aos
próprios pais? Para o catequista jahwista, o amor vem de Deus, que fez o homem
e a mulher de uma só carne; por isso, homem e mulher buscam essa unidade e
estão destinados, fatalmente, a viver em comunhão um com o outro.
ACTUALIZAÇÃO
• “Não é bom que o homem esteja só”. Estas
palavras, postas pelo autor jahwista na boca de Deus, sugerem que a realização
plena do homem acontece na relação e não na solidão. O homem que vive fechado
em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de auto-suficiência,
que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a seu lado, que tem
o coração fechado ao amor e à partilha, é um homem profundamente infeliz, que
nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a preocupação com o dinheiro, com
a realização profissional, com o estatuto social, com o êxito levam os homens a
prescindir do amor, a renunciar à família, a não ter tempo para os amigos… E um
dia, depois de terem acumulado muito dinheiro ou de terem chegado à presidência
da empresa, constatam que estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A
Palavra de Deus que nos é hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do
homem é o amor; a solidão, mesmo quando compensada pela abundância de bens
materiais, é um caminho de infelicidade.
• Por vezes, certos círculos religiosos mais
fechados desvalorizam o amor humano, consideram o casamento como um estado
inferior de realização da vocação cristã e vêem na sexualidade algo de
pecaminoso. Não é esta a perspectiva que a Palavra de Deus nos apresenta… No
nosso texto, o amor aparece como algo que está, desde sempre, inscrito no
projecto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a mulher para
se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas. É no amor e
não na solidão que o homem encontra a sua realização plena e o sentido para a
sua existência.
• Homem e mulher são, de acordo com o nosso
texto, iguais em dignidade. Eles são “da mesma carne”, em igualdade de ser,
partícipes do mesmo destino; completam-se um ao outro e ajudam-se mutuamente a
atingir a realização. São, portanto, iguais em dignidade. Esta realidade exige
que homem e mulher se respeitem absolutamente um ao outro; e exclui,
naturalmente, qualquer atitude que signifique dominação, escravidão,
prepotência, uso egoísta do outro.
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)
Refrão: O Senhor nos abençoe em toda a nossa
vida.
Feliz de ti que temes o Senhor
e andas nos seus caminhos.
Comerás do trabalho das tuas mãos,
serás feliz e tudo te correrá bem.
Tua esposa será como videira fecunda
no íntimo do teu lar;
teus filhos como ramos de oliveira,
ao redor da tua mesa.
Assim será abençoado o homem que teme o Senhor.
De Sião o Senhor te abençoe:
vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida;
e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel.
LEITURA II – Heb 2,9-11
Leitura da Epístola aos hebreus
Irmãos:
Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos,
vemo-l’O agora coroado de glória e de honra
por causa da morte que sofreu,
pois era necessário que, pela graça de Deus,
experimentasse a morte em proveito de todos.
Convinha, na verdade, que Deus,
origem e fim de todas as coisas,
querendo conduzir muitos filhos para a sua glória,
levasse à glória perfeita, pelo sofrimento,
o Autor da salvação.
Pois Aquele que santifica e os que são santificados
procedam todos de um só.
Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.
AMBIENTE
A Carta aos Hebreus é um sermão de um autor
cristão anónimo, provavelmente elaborado nos anos que antecederam a destruição
do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs não
identificadas (o título “aos hebreus” foi-lhe colado posteriormente e provém
das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios”
que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em
situação difícil, expostas a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé…
Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo Evangelho,
deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de certas
doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objectivo do
autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os
crentes a crescer na fé.
A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o
mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm
acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O
autor aproveita, na sequência, para reflectir nas implicações desse facto:
postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos
nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um
contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor
oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz
de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela
perseguição.
O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb
1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva
afirmava sobre o mistério de Cristo: a sua incarnação, a sua paixão e morte, a
sua glorificação pela ressurreição. Ao longo destes dois capítulos, o autor vai
afirmando a superioridade de Jesus em relação a todas as criaturas,
nomeadamente em relação aos anjos.
MENSAGEM
Jesus aceitou despojar-se das suas
prerrogativas divinas e fazer-se “por um pouco, inferior aos anjos” a fim de
que, pelo dom da sua vida até à morte, se cumprisse o projecto salvador do Pai
para os homens (vers. 9).
Depois desta afirmação de princípio, o autor da Carta aos Hebreus vai
aprofundar a sua reflexão e explicar porque é que Jesus teve que passar pela
humilhação da cruz (a explicação é bem mais longa do que a leitura que nos é
proposta e vai do versículo 10 ao versículo 18).
A questão da paixão e morte de Cristo era uma “conveniência” do projecto de
salvação que Deus tinha para o homem (“convinha” – vers. 10). O que é que isso
significa? O objectivo de Deus é que o homem cresça até chegar à vida plena.
Ora, para fazer com que a humanidade atinja esse fim, Deus deu-lhe um guia –
Jesus Cristo. Ele devia mostrar, com a sua vida e o seu exemplo, que se chega à
plenitude da vida cumprindo integralmente a vontade do Pai e fazendo da
existência um dom de amor aos irmãos. A cruz foi a expressão máxima e total
dessa vida de entrega aos desígnios de Deus e de doação aos irmãos. Morrendo
por amor, Jesus ensinou aos homens como é que eles devem viver, qual o caminho
que eles devem percorrer, a fim de chegarem à plenitude da vida, à felicidade
sem fim; morrendo por amor e ressuscitando logo a seguir para a vida plena,
Jesus libertou os homens do medo paralisante da morte e mostrou-lhes que a
morte não é o fim da linha para quem vive na entrega a Deus e na doação aos
irmãos.
Ao assumir a natureza humana, ao fazer-Se solidário com os homens, ao fazer-Se
irmão dos homens, Cristo (Aquele que santifica) inseriu os homens (os que são
santificados) na órbita de Deus e mostrou-lhes o caminho a seguir para integrar
a família de Deus (vers. 11).
ACTUALIZAÇÃO
• A incarnação, paixão e morte de Jesus
atestam, antes de mais, o incrível amor de Deus pelos homens. É o amor de
alguém que enviou o próprio Filho para fazer da sua vida um dom, até à morte na
cruz, a fim de mostrar aos homens o caminho da vida plena e definitiva. Trata-se
de uma realidade que a Palavra de Deus nos recorda cada domingo; e trata-se de
uma realidade que não deve cessar de nos espantar e de nos levar à gratidão e
ao amor.
• A atitude de aceitação incondicional do
projecto do Pai assumida por Cristo contrasta com o egoísmo e a
auto-suficiência de Adão face às propostas de Deus. A obediência de Cristo
trouxe vida plena ao homem; a desobediência de Adão trouxe sofrimento e morte à
humanidade. O exemplo de Cristo convida-nos a viver na escuta atenta e na
obediência radical às propostas de Deus: esse caminho é gerador de vida
verdadeira. Quando o homem prescinde de Deus e das suas propostas e decide que
é ele quem define o caminho a seguir, fatalmente resvala para projectos de
ambição, de orgulho, de injustiça, de morte; quando o homem escuta e acolhe os
desafios de Deus, aprende a amar, a partilhar, a servir, a perdoar e torna-se
uma fonte de bênção para todos aqueles que caminham ao seu lado.
• Jesus fez-Se homem, enfrentou a condição de
debilidade dos homens e morreu na cruz. No entanto, a sua glorificação mostrou
que a morte não é o final do caminho para quem faz da vida uma escuta atenta
dos planos de Deus e uma doação de amor aos irmãos. Dessa forma, Ele libertou
os homens do medo da morte. Agora, podemos enfrentar a injustiça, a opressão,
as forças do mal que oprimem os homens, sem medo de morrer: sabemos que quem
vive como Jesus não fica prisioneiro da morte, mas está destinado à vida
verdadeira e eterna.
ALELUIA – 1 Jo 4,12
Aleluia. Aleluia.
Se nos amamos uns aos outros, Deus permanece
em nós
e o seu amor em nós é perfeito.
EVANGELHO – Mc 10,2-16
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo
São Marcos
Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne’.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.
AMBIENTE
Despedindo-se definitivamente da Galileia,
Jesus continua o seu caminho para Jerusalém, ao encontro do seu destino final.
O episódio de hoje situa-nos “na região da Judeia, para além do Jordão” (vers.
1) – isto é, no território transjordânico da Pereia, território governado por
Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado João Baptista quando este o
criticou por haver abandonado a sua esposa legítima. Aí, Jesus volta a
confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os
discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a beneficiar de uma instrução
especial.
Entram de novo em cena os fariseus, não para escutar as suas propostas, mas
para O experimentar e para Lhe apanhar uma declaração comprometedora. São esses
fanáticos da Lei que vão proporcionar a Jesus a oportunidade de Se pronunciar
sobre uma questão delicada e comprometedora: o matrimónio e o divórcio.
Tratava-se, na realidade, de uma questão “quente” e não totalmente consensual
nas discussões dos “mestres” de Israel. A Lei de Israel permitia o divórcio
(“quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe
agradar, por ter descoberto nela algo de inconveniente, escrever-lhe-á um
documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt
24,1); mas não era totalmente clara acerca das razões que poderiam fundamentar
a rejeição da mulher pelo marido. Na época de Jesus, as duas grandes escolas
teológicas do tempo divergiam na interpretação da Lei do divórcio. A escola de
Hillel ensinava que qualquer motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa
cozinhava mal ou porque o marido gostava mais de outra), servia para o homem
despedir a mulher; a escola de Shammai, mais rigorosa, defendia que só uma
razão muito grave (o adultério ou a má conduta da mulher) dava ao marido o
direito de repudiar a sua esposa. A mulher, por sua vez, era autorizada a obter
o divórcio em tribunal somente no caso de o marido estar afectado pela lepra ou
exercer um ofício repugnante.
É nesta discussão de contornos pouco claros que os fariseus procuram envolver
Jesus. Uma resposta negativa por parte de Jesus seria, certamente, interpretada
como uma condenação do matrimónio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua
cunhada. A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de
encontrar razões para eliminar Jesus.
MENSAGEM
Diante da questão posta pelos fariseus (“pode
um homem repudiar a sua mulher?” – vers. 2), Jesus começa por recordar-lhes o
estado da questão na perspectiva da Lei (“que vos ordenou Moisés?” – vers. 3).
Tal não significa, contudo, que Jesus Se identifique com o posicionamento da
Lei a propósito da questão do divórcio.
Efectivamente, a Lei permite o divórcio (“Moisés permitiu que se passasse um
certificado de divórcio para se repudiar a mulher” – vers. 4); contudo, essa
condescendência da Lei não resulta do projecto de Deus para o homem e para a
mulher, mas é o resultado da “dureza do coração” dos homens. As prescrições de
Moisés não definem o quadro ideal do amor do homem e da mulher, mas apenas
regulam o compromisso matrimonial, tendo em conta a mediocridade humana.
Em contraste com a permissividade da Lei, Jesus vai apresentar o projecto
primordial de Deus para o amor do homem e da mulher. Citando livremente Gn 1,27
e Gn 2,24, Jesus explica que, no projecto original de Deus, o homem e a mulher
foram criados um para o outro, para se completarem, para se ajudarem, para se
amarem. Unidos pelo amor, o homem e a mulher formarão “uma só carne”. Ser “uma
só carne” implica viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao
outro, partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte
do que qualquer outro vínculo. A separação será sempre o fracasso do amor; não
está prevista no projecto ideal de Deus, pois Deus não considera um amor que
não seja total e duradouro. Só o amor eterno, expresso num compromisso
indissolúvel, respeita o projecto primordial de Deus para o homem e para a
mulher.
A perspectiva de Jesus acerca da questão é a seguinte: nessa nova realidade que
Deus quer propor ao homem (o Reino de Deus), chegou o momento de abandonar a
facilidade, a mesquinhez, as meias-tintas e de apontar para um patamar mais
alto. Ora, no que diz respeito ao matrimónio, o patamar mais alto é o projecto
inicial de Deus para o homem e para a mulher, que previa um compromisso de amor
estável, duradouro, indissolúvel.
Para os discípulos (que anteriormente, em diversas situações, tiveram
dificuldade em passar da lógica do mundo para a lógica de Deus), contudo, o
discurso de Jesus é difícil de entender; por isso, quando chegam a casa, pedem
a Jesus explicações suplementares (vers. 10). Jesus reitera que a relação entre
o homem e a mulher se deve enquadrar no projecto inicial de Deus e não nas
facilidades concedidas pela Lei de Moisés. A perspectiva de Deus é que marido e
mulher, unidos pelo amor, formem uma comunidade de vida estável e indissolúvel.
O divórcio não entra nesse projecto. Marido e esposa, em igualdade de
circunstâncias, são responsáveis pela edificação da comunidade familiar e por
evitar o fracasso do amor (vers. 11-12).
O texto que nos é proposto termina com uma cena em que Jesus acolhe as
crianças, defende-as e abençoa-as (vers. 13-16). As crianças são, aqui, uma
espécie de contraponto ao orgulho e arrogância com que os fariseus se
apresentam a Jesus, bem como à dificuldade que os discípulos revelaram, nas
cenas precedentes, para acolher a lógica do Reino… As crianças são simples,
transparentes, sem calculismos; não têm prestígio ou privilégios a defender;
entregam-se confiadamente nos braços do pai e dele esperam tudo, com amor. Por
isso, as crianças são o modelo do discípulo. O Reino de Deus é daqueles que,
como as crianças, vivem com sinceridade e verdade, sem se preocuparem com a
defesa dos seus interesses egoístas ou dos seus privilégios, acolhendo as
propostas de Deus com simplicidade e amor. Quem não é “criança”, isto é, quem
percorre caminhos tortuosos e calculistas, quem não renuncia ao orgulho e
auto-suficiência, quem despreza a lógica de Deus e só conta com a lógica do
mundo (também na questão do casamento e do divórcio), quem conduz a própria
vida ao sabor de interesses e valores efémeros, quem não aceita questionar os
próprios raciocínios e preconceitos, não pode integrar a comunidade do Reino.
ACTUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo apresenta-nos o
projecto ideal de Deus para o homem e para a mulher que se amam: eles são
convidados a viverem em comunhão total um com o outro, dando-se um ao outro,
partilhando a vida um com o outro, unidos por um amor que é mais forte do que
qualquer outro vínculo. O fracasso dessa relação não está previsto nesse
projecto ideal de Deus. O amor de um homem e de uma mulher que se comprometem
diante de Deus e da sociedade deve ser um amor eterno e indestrutível, que é
reflexo desse amor que Deus tem pelos homens. Este projecto de Deus não é uma
realidade inatingível e impossível: há muitos casais que, dia a dia, no meio
das dificuldades, lutam pelo seu amor e dão testemunho de um amor eterno e que
nada consegue abalar.
• As telenovelas, os valores da moda, a
opinião pública, têm-se esforçado por apresentar o fracasso do amor como uma
realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante e que resolve
facilmente as dificuldades que duas pessoas têm em partilhar o seu projecto de
amor. Para os casais cristãos, o fracasso do amor não é uma normalidade, mas
uma situação extrema, uma realidade excepcional. Para os casais cristãos, o
divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para resolver as
pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. À partida, o
compromisso de amor não deve ser uma realidade efémera, sujeito a projectos
egoístas e a planos superficiais, que terminam quando surgem dificuldades ou
quando um dos dois é confrontado com outras propostas. Para o casal que quer
viver na dinâmica do Reino, a separação não deve ser uma proposta sempre em
cima da mesa. Marido e esposa têm que esforçar-se por realizar a sua vocação de
amor, apesar das dificuldades, das crises, das divergências e dos problemas
que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. A Igreja é chamada a ser no mundo,
mesmo contra a corrente, testemunha do projecto ideal de Deus.
• Apesar de tudo, a vida dos homens e das
mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem sempre as
pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos
ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de infidelidades,
de falhas. Nessas circunstâncias, a comunidade cristã deve usar de muita
compreensão para aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na vivência do
seu projecto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas divorciadas devem ser
marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã. A comunidade deve, em
todos os instantes, acolher, integrar, compreender, ajudar aqueles a quem as
circunstâncias da vida impediram de viver o tal projecto ideal de Deus. Não se
trata de renunciar ao “ideal” que Deus propõe; trata-se de testemunhar a
bondade e a misericórdia de Deus para com todos aqueles a quem a partilha de um
projecto comum fez sofrer e que, por diversas razões, não puderam realizar esse
ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade, se comprometeram a viver.
• As crianças que Jesus nos apresenta no
Evangelho deste domingo como modelos do discípulo convidam-nos à simplicidade,
à humildade, à sinceridade, ao acolhimento humilde dos dons de Deus. De acordo
com as palavras de Jesus, não pode integrar o Reino quem se coloca numa atitude
de orgulho, de auto-suficiência, de autoritarismo, de superioridade sobre os
irmãos. A dinâmica do Reino exige pessoas dispostas a acolher e a escutar as
propostas de Deus e dispostas a servir os irmãos com humildade e simplicidade.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 27º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 27º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária
da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para
viver em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Quando Jesus pressente que Lhe querem estender uma armadilha, Ele refere-se à
vontade de seu Pai. Ora, Deus tem um projecto que submete ao homem, e este,
porque foi criado livre, realiza este projecto ou recusa-o. O mais belo
projecto de Deus é o homem, a sua criatura. Como Ele o criou à sua imagem,
fê-lo como ser de relação. É por isso que Ele cria a humanidade, homem e
mulher, e a sua comunhão significa algo de Deus que em si mesmo é comunhão. O
que conta numa obra artística não são primeiramente as interpretações ou os
comentários que são feitos, mas a intenção do autor. Face ao amor do homem e da
mulher, não comecemos por olhar como é vivida hoje a relação, mas contemplemos
o sonho de Deus e tenhamos sobre os casais o olhar de Deus, que vê que aquilo
que Ele fez é bom ou que oferece a sua misericórdia àqueles que não puderam ou
não quiseram interpretar o seu projecto.
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Não separe o homem o que Deus uniu…” Jesus coloca o dedo na ferida… O divórcio
é sempre um fracasso, um sofrimento. Mas entrou nos costumes como uma realidade
normal, um “direito”! Jesus está contra a corrente… Palavra incompreensível
para muitos homens e mulheres, qualquer que seja a sua idade! Na sua resposta
aos fariseus, Jesus recorre a um critério a que geralmente se presta pouca
atenção. Vai ao “princípio da criação”, à vontade primeira, à vontade criadora
de Deus. Ora, esta vontade é que os seres humanos se tornem “imagens de Deus”,
na medida em que aceitem entrar uns e outros nas relações de amor recíproco,
porque Ele, Deus, é eterno movimento de amor no seu Ser mais profundo. O casal
humano, antes mesmo da questão da procriação, é chamado por Deus a tornar-se o
primeiro lugar de incarnação deste movimento de amor. O amor humano, sob todas
as suas formas, não nasceu dos acasos da evolução biológica. É dom de Deus.
Quando os homens recusam este dom, impedem Deus de imprimir neles a sua imagem.
Na realidade, vão contra a vontade criadora, introduzem uma desordem na criação
tal como Deus a quis. Porque Ele escuta plenamente o seu Pai e acolhe sem
quaisquer reticências nem recusas a vontade de amor do seu Pai, Jesus, e apenas
Ele, pode colocar-nos na luz de Deus Criador e da sua vontade criadora. Mas
isso supõe que aceitemos escutar Jesus, tomar Jesus na nossa vida. Só poderemos
compreender a exigência de unidade e de fidelidade no amor humano se aceitarmos
tornar-nos, dia após dia, discípulos, mais ainda, amigos de Jesus. Para
resolver os nossos problemas afectivos, temos razão em recorrer à psicologia, à
psicoterapia do casal. Mas isso não basta. A verdadeira falta é uma falta de
profundidade espiritual. Não servirá de nada a Igreja repetir sem cessar a sua
oposição ao divórcio se, primeiro, não fizer imensos esforços para ajudar a
redescobrir um verdadeiro acompanhamento com Jesus, revelador do amor do Pai.
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Que o Senhor te abençoe… Como seria belo, em cada manhã desta semana, dizer-se
bom dia, em família, com as simples palavras do salmista: “Que o Senhor te
abençoe…” Fórmula de bênção, em que se deseja apenas o bem. Ultrapassemos
qualquer falso pudor, para oferecermos àqueles que amamos a bênção do Senhor.
UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA
ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
Grupo Dinamizador:
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
Tel. 218540900 – Fax: 218540909
portugal@dehonianos.org – www.dehonianos.org