06/09/2015
23º Domingo do
Tempo Comum - Ano B
ANO B
23º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Tema do 23º Domingo do Tempo Comum
A liturgia do 23º Domingo do Tempo Comum
fala-nos de um Deus comprometido com a vida e a felicidade do homem,
continuamente apostado em renovar, em transformar, em recriar o homem, de modo
a fazê-lo atingir a vida plena do Homem Novo.
Na primeira leitura, um profeta da época do exílio na Babilónia garante aos
exilados, afogados na dor e no desespero, que Jahwéh está prestes a vir ao
encontro do seu Povo para o libertar e para o conduzir à sua terra. Nas imagens
dos cegos que voltam a contemplar a luz, dos surdos que voltam a ouvir, dos
coxos que saltarão como veados e dos mudos a cantar com alegria, o profeta
representa essa vida nova, excessiva, abundante, transformadora, que Deus vai
oferecer a Judá.
No Evangelho, Jesus, cumprindo o mandato que o Pai Lhe confiou, abre os ouvidos
e solta a língua de um surdo-mudo… No gesto de Jesus, revela-se esse Deus que
não Se conforma quando o homem se fecha no egoísmo e na auto-suficiência,
rejeitando o amor, a partilha, a comunhão. O encontro com Cristo leva o homem a
sair do seu isolamento e a estabelecer laços familiares com Deus e com todos os
irmãos, sem excepção.
A segunda leitura dirige-se àqueles que acolheram a proposta de Jesus e se
comprometeram a segui-l’O no caminho do amor, da partilha, da doação.
Convida-os a não discriminar ou marginalizar qualquer irmão e a acolher com
especial bondade os pequenos e os pobres.
LEITURA I – Is 35,4-7a
Leitura do Livro de Isaías
Dizei aos corações perturbados:
«Tende coragem, não temais.
Aí está o vosso Deus;
vem para fazer justiça e dar a recompensa;
Ele próprio vem salvar-nos».
Então se abrirão os olhos dos cegos
e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
Então o coxo saltará como um veado
e a língua do mudo cantará de alegria.
As águas brotarão no deserto
e as torrentes na aridez da planície;
a terra seca transformar-se-á em lago
e a terra árida em nascentes de água.
AMBIENTE
Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías
constituem aquilo que habitualmente se chama “pequeno apocalipse de Isaías”
(para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos
24-27). Descrevem os últimos combates travados por Jahwéh contra as nações
(particularmente contra Edom) e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os
inimigos. Estes dois capítulos parecem poder ser relacionados com os capítulos
40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é esse Deutero-Isaías que actuou na
Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). Porque razão estes dois
capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)?
Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33, e
especialmente pelo capítulo 33.
O autor destes textos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na
Babilónia (à volta do ano 550 a.C.). A intenção do profeta é consolar os
exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a
libertação tarda e parece que Deus os abandonou (uma temática que será
desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías). Depois de
apresentar o julgamento de Deus (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is
34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de Deus porque a
libertação chegou e a transformação extraordinária do deserto sírio, pelo qual
vão passar os israelitas libertados, que retornam do Exílio.
MENSAGEM
O Povo de Deus, exilado na Babilónia, está
paralisado pelo desespero. Mostra-se abatido e incapaz de sair, por si só, da
sua triste situação. Não tem perspectivas de futuro e não vê qualquer razão
para ter esperança.
O profeta dirige-se então aos exilados e anuncia-lhes a iminência da
libertação. O tom geral é de alegria – uma alegria que envolverá a natureza e
as pessoas, porque o Senhor Se apresta para salvar Judá do cativeiro e para
abrir uma estrada no deserto, a fim de que o seu Povo possa retornar em triunfo
a Jerusalém.
Apesar das aparências, Deus não esqueceu o seu Povo. Judá deve recobrar ânimo e
preparar-se para acolher o Senhor. O próprio Jahwéh irá realizar a libertação;
Ele fará justiça e recompensará o seu Povo por todos os sofrimentos suportados
no tempo do cativeiro (vers. 4).
O resultado da iniciativa salvadora e libertadora de Deus traduzir-se-á no
despertar do Povo, paralisado e desanimado, para uma vida nova. O encontro com
o Deus libertador e salvador transformará o Povo, dar-lhe-á de novo a
liberdade, a alegria, a coragem para enfrentar o caminho, a vida em abundância.
Nas imagens dos cegos que voltam a contemplar a luz, dos surdos que voltam a
ouvir, dos coxos que saltarão como veados e dos mudos a cantar com alegria
(vers. 5-6), o profeta representa essa vida nova, excessiva, abundante,
transformadora, que Deus vai oferecer a Judá.
Por outro lado, o dom de Deus manifestar-se-á na própria natureza. O deserto
desolado e estéril, que os exilados terão de atravessar na caminhada de
regresso à sua terra, transformar-se-á numa terra fértil, com água em
abundância e onde o Povo não terá dificuldade em saciar a sua fome e a sua
sede. A abundância de água no deserto, de que o profeta fala, é outra imagem
para mostrar a vontade de Deus em cumular o seu Povo de vida plena e abundante.
A marcha do Povo da terra da escravidão para a terra da liberdade será um novo
êxodo, onde se repetirão as maravilhas operadas pelo Deus libertador aquando do
primeiro êxodo; no entanto, este segundo êxodo será ainda mais grandioso,
quanto à manifestação e à acção de Deus. Será uma peregrinação festiva, uma
procissão solene, feita na alegria e na festa.
Qual o papel do Povo em tudo isto? Judá deve recobrar ânimo e acolher, com fé,
com coragem, com confiança, os dons de Deus.
ACTUALIZAÇÃO
• Para os optimistas, o nosso tempo é um
tempo de grandes realizações, de grandes descobertas, em que se abre todo um
mundo de possibilidades ao homem; para os pessimistas, o nosso tempo é um tempo
de sobreaquecimento do planeta, de subida do nível do mar, de destruição da
camada do ozono, de eliminação das florestas, de risco de holocausto nuclear…
Para uns e para outros, é um tempo de desafios, de interpelações, de procura,
de risco… Como é que nós nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos
da esperança, ou com os óculos negros do desespero?
• Os crentes não podem esquecer que “Deus
está aí”: a sua intervenção faz com que o deserto se revista de vida e que na
planície árida do desespero brote a flor da esperança. Aos cegos, que caminham
pela vida às apalpadelas e que têm dificuldade em descobrir o rumo e o sentido
para a sua existência, Deus irá oferecer a luz que lhes indica o caminho seguro
para a realização e para a felicidade; aos surdos, fechados no seu egoísmo e na
sua auto-suficiência, Deus irá desimpedir os ouvidos para que escutem os gritos
de sofrimento dos pobres e para que se comprometam na transformação do mundo;
aos coxos, que não conseguem caminhar livremente e estão presos por cadeias de
opressão, de injustiça, de pecado, Deus vai oferecer a liberdade; aos mudos,
cuja língua está paralisada pelo medo, pelo comodismo, pela preguiça, pela
passividade, Deus vai convocá-los e enviá-los como mensageiros da justiça, do
amor e da paz. É com a certeza da presença salvadora e amorosa de Deus e com a
convicção de que Ele não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte
que somos convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história.
• O profeta é o homem que rema contra a
maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o profeta é
capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do horizonte
do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então gritar aos quatro ventos a
esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o imobilismo
se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. É este testemunho de
esperança que procuramos dar?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)
Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.
Refrão 2: Aleluia.
O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.
O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.
O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.
O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.
LEITURA II – Tiago 2,1-5
Leitura da Epístola de São Tiago
Meus irmãos:
A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo
não deve admitir acepção de pessoas.
Pode acontecer que na vossa assembleia
entre um homem bem vestido e com anéis de ouro
e entre também um pobre e mal vestido;
talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais:
«Tu, senta-te aqui em bom lugar»,
e ao pobre: «Tu, fica aí de pé»,
ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés».
Não estareis a estabelecer distinções entre vós
e a tornar-vos juízes com maus critérios?
Escutai, meus caríssimos irmãos:
Não escolheu Deus os pobres deste mundo
para serem ricos na fé
e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?
AMBIENTE
Continuamos hoje a leitura dessa Carta de
Tiago, enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). A expressão
indica que os destinatários da missiva são, em primeiro lugar, cristãos de
origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas
da Palestina – como a Síria, o Egipto ou a Ásia Menor; mas a carta serve também
para todos os crentes, de todas as épocas, de todas as raças e de todas as
latitudes. O objectivo fundamental do autor é exortar os crentes para que não
percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos
ensinamentos de Cristo.
O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor
trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem
qualquer tipo de discriminação ou de acepção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé
expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de
acções concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo
convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso
social e comunitário.
MENSAGEM
Jesus não fez qualquer acepção de pessoas, mas
a todos acolheu e a todos amou igualmente (mesmo os pobres, os “últimos”, os
marginalizados, os pecadores, os doentes). Quem aderiu a Jesus Cristo e
procura, com coerência, segui-l’O, tem de assumir os mesmos valores; por isso,
não pode marginalizar ninguém ou aceitar qualquer sistema que crie
discriminação (vers. 1).
Depois da afirmação geral, o autor da carta apresenta exemplos concretos: a
comunidade cristã não pode acolher e tratar de forma diferente o rico e o
pobre, aquele que se apresenta bem vestido e aquele que se apresenta mal
vestido, aquele que é conhecido e famoso e aquele que é humilde e passa
despercebido (vers. 2-3). Na comunidade cristã, todos são iguais e dignos de
consideração e de respeito, ainda que desempenhem funções diferentes e serviços
diversos. Para os seguidores de Jesus, a acepção de pessoas por razões ligadas
à riqueza, ao poder, à fama, à posição social, é um esquema perverso,
absolutamente incompatível com a fé em Cristo (vers. 4).
O nosso texto termina com uma pergunta retórica que parece afirmar a
preferência de Deus pelos “pobres deste mundo”, escolhidos “pare serem ricos na
fé e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam” (vers. 5). Os
“pobres deste mundo” são, mais do que uma categoria sociológica, uma categoria
religiosa… A expressão designa, na linguagem bíblica, os humildes, os débeis,
os pacíficos, aqueles que se apresentam diante de Deus numa atitude de
simplicidade, despidos de qualquer atitude de orgulho, de auto-suficiência, de
preconceitos; são aqueles que, com humildade e disponibilidade, aceitam os dons
de Deus e acolhem as suas propostas com alegria e gratidão.
Porque é que Deus os prefere? Em primeiro lugar, porque são os que mais
necessitam de ser libertados e salvos; em segundo lugar, porque são os mais
disponíveis para acolher o dom do reino. Não é que o reino de Deus seja uma
opção de classe e que os ricos e poderosos não possam, à partida, ter acesso ao
reino; mas os ricos, os poderosos, os instalados, com o coração cheio de
orgulho e de auto-suficiência, não estão disponíveis para acolher a novidade
revolucionária e libertadora do reino… São os “pobres”, na sua simplicidade,
humildade e despojamento, na sua ânsia de libertação, que estão preparados para
acolher o dom de Deus que se torna presente em Jesus e nos seu projecto.
ACTUALIZAÇÃO
• O cristão é, antes de mais, alguém que
aderiu a Jesus Cristo, que assumiu os valores que Ele veio propor e que procura
concretizar, dia a dia, essa proposta de vida que Ele veio fazer. Ora, Jesus
Cristo nunca discriminou nem nunca marginalizou ninguém; sentou-se à mesa com
os desclassificados, acolheu os doentes, estendeu a mão aos leprosos, chamou um
publicano para fazer parte do seu grupo, teve gestos de bondade e de
misericórdia para com os pecadores, disse que os pobres eram os filhos queridos
de Deus, amou aqueles que a sociedade religiosa do tempo considerava
amaldiçoados e condenados… A comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o
rosto de Cristo para os homens; por isso, não faz sentido qualquer acepção de
pessoas na comunidade cristã. Naturalmente, isto é uma evidência que ninguém
contesta… Mas, na prática, todos são acolhidos na nossa comunidade cristã com
respeito e amor? Tratamos com a mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é
rico e quem é pobre, quem tem uma posição social relevante e quem a não tem,
quem tem um título universitário e quem é analfabeto, quem tem um comportamento
religiosamente correcto e quem tem um estilo de vida que não se coaduna com as
nossas perspectivas, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica
diante de certas opções dos responsáveis da comunidade? Não esqueçamos: a
comunidade cristã é chamada a testemunhar o amor, a bondade, a misericórdia, a
tolerância de Cristo para com todos os irmãos, sem excepção.
• O problema da discriminação e da
marginalização das pessoas põe-se também – e talvez com maior acuidade – nos
contactos que estabelecemos fora da comunidade cristã. Encontramos todos os
dias no nosso círculo de relações, no nosso universo profissional, no nosso
prédio, talvez até na nossa família, pessoas com quem não nos identificamos, de
quem não gostamos, a quem não entendemos… É difícil, então, acolhê-las,
aceitá-las, entender as suas características e as suas falhas, tratá-las com
bondade, com compreensão, com tolerância, com amor. No entanto, nós, os
seguidores de Jesus, somos testemunhas dos valores do Evangelho vinte e quatro
horas por dia, em qualquer espaço e em qualquer ambiente… A fraternidade, o
amor, a misericórdia, a tolerância que Cristo nos propõe têm de informar cada
passo da nossa existência e derramar-se sobre aqueles que encontramos em cada
instante, mesmo se são de outra raça, se têm outra cultura, se frequentam
ambientes diversos, se não concordam com as nossas ideias, se têm uma forma
diferente de encarar a vida.
• O nosso texto revela-nos que Deus
prefere os pobres, os humildes, os simples. Isto não quer dizer, contudo, que
Deus tenha uma opção de classe e que privilegie uns em detrimento de outros…
Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida a todos; contudo, uns acolhem
os seus dons e outros não… O que é decisivo, na perspectiva de Deus, é a
disponibilidade para acolher a sua proposta e os seus dons. O nosso texto
convida-nos a despir-nos do orgulho, da auto-suficiência, dos preconceitos,
para acolher com humildade e simplicidade os dons de Deus.
ALELUIA – cf. Mt 4,23
Aleluia. Aleluia.
Jesus pregava o Evangelho do reino
e curava todas as enfermidades entre o povo.
EVANGELHO – Mc 7,31-37
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo
São Marcos
Naquele tempo,
Jesus deixou de novo a região de Tiro
e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu,
suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar correctamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava,
tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável:
faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».
AMBIENTE
Na fase final da “etapa da Galileia”,
multiplicam-se as reacções negativas contra Jesus e contra o seu projecto,
apesar do rasto de vida nova que Ele vai deixando pelas aldeias e cidades por
onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a
propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23) são
uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e
refugiar-Se em território pagão.
É nesse contexto que Marcos fala de uma viagem pela Fenícia, que leva Jesus a
passar pelos territórios de Tiro e de Sídon – cidades da faixa costeira
oriental do mar Mediterrâneo, no actual Líbano (cf. Mc 7,24). No regresso dessa
incursão pela Fenícia, Jesus teria dado uma longa volta pelo território pagão
da Decápole (cf. Mc 7,31). A Decápole (“dez cidades”) era o nome dado ao
território situado na Palestina oriental, estendendo-se desde Damasco, ao
norte, até Filadélfia, ao sul. O nome servia para designar uma liga de dez
cidades, que se formou depois da conquista da Palestina pelos romanos, no ano
63 a.C.. As “dez cidades” que formavam esta liga eram helenísticas e não
estavam sujeitas às leis judaicas. As cidades que integravam a Decápole (bem
como os territórios circundantes a cada uma dessas cidades) estavam sob a
administração do legado romano da Síria. Eram território pagão, considerado
pelos judeus completamente à margem dos caminhos da salvação.
É nesse ambiente geográfico e humano que o episódio da cura do surdo-mudo nos
vai situar. O gesto de Jesus de curar o surdo-mudo deve ser visto como mais um
passo no anúncio desse projecto que Jesus vai propondo por toda a Galileia: o projecto
do Reino de Deus.
MENSAGEM
Num lugar não identificado da região da
Decápole, Jesus encontrou-Se com um surdo-mudo. As pessoas que trouxeram o
surdo-mudo suplicaram a Jesus “que impusesse as mãos sobre Ele” (vers. 32). Na
sequência Marcos descreve, com grande abundância de pormenores (alguns bem
estranhos), como Jesus curou o doente e lhe deu a possibilidade de comunicar.
Contudo, depois de ler a narração deste episódio, ficamos com a sensação de que
Marcos quer muito mais do que contar uma simples cura de um surdo-mudo… A
descrição de Marcos, enriquecida com um número significativo de elementos
simbólicos, é uma catequese sobre a missão de Jesus e sobre o papel que Ele
desenvolve no sentido de fazer nascer um Homem Novo.
Vejamos, de forma esquemática, os elementos principais dessa catequese que
Marcos apresenta:
1. No centro da cena está Jesus e o surdo-mudo
(literalmente, “um surdo que tinha também um problema na fala”). Se a linguagem
é um meio privilegiado de comunicar, de estabelecer relação, o surdo-mudo é um
homem que tem dificuldade em estabelecer laços, em partilhar, em dialogar, em
comunicar. Por outro lado, num universo religioso que considera as enfermidades
físicas como consequência do pecado, o surdo-mudo é, de forma notória, um
“impuro”, um pecador e um maldito. Finalmente, o surdo-mudo vive no território
pagão da Decápole: é provavelmente um desses pagãos que a teologia judaica
considerava à margem da salvação.
Na catequese de Marcos, este surdo-mudo representa todos aqueles que vivem fechados
no seu mundo, na sua pobre auto-suficiência, de ouvidos fechados às propostas
de Deus e de coração fechado à relação com os outros homens. Representa também
aqueles que a teologia oficial considerava pecadores e malditos, incapazes de
estabelecer uma relação verdadeira com Deus, de escutar a Palavra de Deus e de
viver de forma coerente com os desafios de Deus. Representa ainda esses
“pagãos” que os judeus desprezavam e que consideravam completamente alheados
dos caminhos da salvação.
2. O encontro com Jesus transforma
radicalmente a vida desse surdo-mudo. Jesus abre-lhe os ouvidos e solta-lhe a
língua (vers. 35), tornando-o capaz de comunicar, de escutar, de falar, de
partilhar, de entrar em comunhão. Na história deste surdo-mudo, Marcos
representa a missão de Jesus, que veio para abrir os ouvidos e os corações dos
homens, quer à Palavra e às propostas de Deus, quer à relação e ao diálogo com
os outros homens. O episódio lembra-nos imediatamente o anúncio de Isaías na
primeira leitura: “Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus; vem para
fazer justiça e dar a recompensa; Ele próprio vem salvar-vos. Então se abrirão
os olhos dos cegos e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; então o coxo
saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria” (Is 35,4-6). Jesus
é efectivamente o Deus que veio ao encontro dos homens, a fim de os libertar
das cadeias do egoísmo, do comodismo, da auto-suficiência, dos preconceitos
religiosos que impedem a relação, o diálogo, a comunhão com Deus e com os
irmãos.
3. Aparentemente, não é o surdo-mudo que tem a
iniciativa de se encontrar com Jesus (“trouxeram-Lhe um surdo que mal podia
falar”; “suplicaram-Lhe que lhe impusesse as mãos sobre ele” – vers. 32). O
surdo-mudo, instalado e acomodado a essa vida sem relação, não sente grande
necessidade de abrir as janelas do seu coração para o encontro e para a
comunhão com Deus e com os irmãos. É preciso que alguém o traga, que o
apresente a Jesus, que o empurre para essa vida nova de amor e de comunhão. É
esse o papel da comunidade cristã… Os que já descobriram Jesus, que se deixaram
transformar pela sua Palavra, que aceitaram segui-l’O, devem dar testemunho
dessa experiência e desafiar outros irmãos para o encontro libertador com
Jesus.
4. A sós com o surdo-mudo, Jesus realiza
gestos significativos: mete-lhe os dedos nos ouvidos, faz saliva e toca-lhe com
ela a língua (vers. 33). Tocar com o dedo significava transmitir poder; a
saliva transmitia, pensava-se, a própria força ou energia vital (equivale ao
sopro de Deus que transformou o barro inerte do primeiro homem num ser dotado
de vida divina – cf. Gn 2,7). Assim, Jesus transmitiu ao surdo-mudo a sua
própria energia vital, dotando-o da capacidade de ser um Homem Novo, aberto à
comunhão com Deus e à relação com os outros homens.
5. O gesto de Jesus de levantar os olhos ao
céu (vers. 34) deve ser entendido como um gesto de invocação de Deus. Para
Jesus, os grandes momentos de decisão e de testemunho são sempre antecedidos de
um diálogo com o Pai. Dessa forma, torna-se evidente a ligação estreita entre
Jesus e o Pai, entre a acção que Jesus cumpre no meio dos homens e os projectos
do Pai. Os gestos de Jesus no sentido de dar vida ao homem, de o libertar do
seu fechamento e da sua auto-suficiência, de o abrir à relação, são gestos que
têm o aval do Pai e que se inserem no projecto salvador do Pai.
6. De acordo com Marcos, Jesus teria
pronunciado a palavra “effathá” (“abre-te”), quando abriu os ouvidos e desatou
a língua do surdo-mudo. Não se trata de uma fórmula mágica, com especiais
virtudes curativas… É um convite ao homem fechado no seu mundo pessoal a abrir
o coração à vida nova da relação com Deus e com os irmãos. É um convite ao
surdo-mudo a sair do seu fechamento, do seu comodismo, do seu egoísmo, da sua
instalação, para fazer da sua vida uma história de comunhão com Deus e de
partilha com os irmãos. O processo de transformação do surdo-mudo em Homem Novo
não é um processo em que só Jesus age e onde o homem assume uma atitude de
passividade; mas é um processo que exige o compromisso activo e livre do homem.
Jesus faz as propostas, lança desafios, oferece o seu Espírito que transforma e
renova o coração do homem; mas o homem tem de acolher a proposta, optar por
Jesus e abrir o coração aos desafios de Deus.
7. No final do relato da cura do surdo-mudo,
as testemunhas do acontecimento dizem a propósito de Jesus: “tudo o que Ele faz
é admirável” (vers. 37). A expressão parece ser um eco de Gn 1,31 (“Deus, vendo
a sua obra, considerou-a muito boa”). Ao enlaçar este relato com o relato da
criação do homem, Marcos está a dar-nos a chave de leitura para entender a obra
de Jesus: a acção de Jesus no sentido de abrir o coração dos homens à comunhão
com Deus e ao amor dos irmãos é uma nova criação. Dessa acção nasce um Homem
Novo, uma nova humanidade. Esse Homem Novo é a “admirável” criação de Deus, o
homem na plenitude das suas potencialidades, criado para a vida eterna e
verdadeira.
ACTUALIZAÇÃO
• O Evangelho deste domingo garante-nos,
uma vez mais, que o Deus em quem acreditamos é um Deus comprometido connosco,
continuamente apostado em renovar o homem, em transformá-lo, em recriá-lo, em
fazê-lo chegar à vida plena do Homem Novo. Este Deus que abre os ouvidos dos
surdos e solta a língua dos mudos é um Deus cheio de amor, que não abandona os
homens à sua sorte nem os deixa adormecer em esquemas de comodismo e de
instalação; mas, a cada instante, vem ao seu encontro, desafia-os a ir mais
além, convida-os a atingir a plenitude das suas possibilidades e das suas
potencialidades. Não esqueçamos esta realidade: na nossa viagem pela vida, não
caminhamos sozinhos, arrastando sem objectivo a nossa pequenez, a nossa
miséria, a nossa debilidade; mas ao longo de todo o nosso percurso pela
história, o nosso Deus vai ao nosso lado, apontando-nos, com amor, os caminhos
que nos conduzem à felicidade e à vida verdadeira.
• O surdo-mudo, incapaz de escutar a
Palavra de Deus, representa esses homens que vivem fechados aos projectos e aos
desafios de Deus, ocupados em construir a sua vida de acordo com esquemas de
egoísmo, de orgulho, de auto-suficiência, que não precisam de Deus nem das suas
propostas. O homem do nosso tempo já nem gasta tempo a negar Deus; limita-se a
ignorá-l’O, surdo aos seus desafios e às suas indicações. O que é que as
propostas de Deus significam para mim? Dou ouvidos aos apelos e desafios de
Deus, ou aos valores e propostas que o mundo me apresenta? Quando tenho que
fazer opções, o que é que conta: as propostas de Deus ou as propostas do mundo?
• O surdo-mudo representa também aqueles
que não se preocupam em comunicar, em partilhar a vida, em dialogar, em
deixar-se interpelar pelos outros… Define a atitude de quem não precisa dos
irmãos para nada, de quem vive instalado nas suas certezas e nos seus
preconceitos, convencido de que é dono absoluto da verdade. Define a atitude
daquele que não tem tempo nem disponibilidade para o irmão; define a atitude de
quem não é tolerante, de quem não consegue compreender os erros e as falhas dos
outros e não sabe perdoar. Uma vida de “surdez” é uma vida vazia, estéril,
triste, egoísta, fechada, sem amor. Não é nesse caminho que encontramos a nossa
realização e a nossa felicidade…
• O surdo-mudo representa ainda aqueles
que se fecham no egoísmo e no comodismo, indiferentes aos apelos do mundo e dos
irmãos. Somos surdos quando escutamos os gritos dos injustiçados e lavamos as
nossas mãos; somos surdos quando toleramos estruturas que geram injustiça,
miséria, sofrimento e morte; somos surdos quando pactuamos com valores que
tornam o homem mais escravo e mais dependente; somos surdos quando encolhemos
os ombros, indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à doença, ao
analfabetismo; somos surdos quando temos vergonha de testemunhar os valores em
que acreditamos; somos surdos quando nos demitimos das nossas responsabilidades
e deixamos que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar; somos surdos
quando calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo; somos surdos
quando nos resignamos a vegetar no nosso sofá cómodo, sem nos empenharmos na
construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada nesta “surdez”
descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
• A missão de Cristo consistiu
precisamente em abrir os olhos aos cegos e desatar a língua dos mudos… Ele veio
abrir-nos à relação com Deus, ao amor dos irmãos, ao compromisso com o mundo.
Quem adere a Cristo e quer segui-l’O no caminho do amor a Deus e da entrega aos
irmãos, não pode resignar-se a viver fechado a Deus e ao mundo. O encontro com
Cristo tira-nos da mediocridade e desperta-nos para o compromisso, para o
empenho, para o testemunho. Leva-nos a sair do nosso isolamento e a estabelecer
laços familiares com Deus e com todos os nossos irmãos, sem excepção.
• O surdo-mudo da nossa história foi
trazido e apresentado a Jesus por outras pessoas. O pormenor lembra-nos o nosso
papel no sentido de fazer a ponte entre os irmãos que vivem prisioneiros da
“surdez” e a proposta libertadora de Jesus Cristo. Não podemos ficar de braços
cruzados quando algum dos nossos irmãos se instala em esquemas de fechamento,
de egoísmo, de auto-suficiência; mas, com o nosso testemunho de vida, temos de
lhe apresentar essa proposta libertadora que Cristo quer oferecer a todos os
homens.
• Antes de curar o surdo-mudo, Jesus
“ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus recorda-nos que é preciso manter
sempre, no meio da acção, a referência a Deus. É necessário dialogarmos
continuamente com Deus para descobrir os seus projectos, para perceber as suas
propostas, para ser fiel aos seus planos; é preciso tomar continuamente
consciência de que é Deus que age no mundo através dos nossos gestos; é preciso
que toda a nossa acção encontre em Deus a sua razão última: se isso não
acontecer, rapidamente a nossa acção perde todo o sentido.
ALGUMAS SUGESTÕES PRÁTICAS PARA O 23º DOMINGO DO TEMPO COMUM
(adaptadas de “Signes d’aujourd’hui”)
1. A PALAVRA MEDITADA AO LONGO DA SEMANA.
Ao longo dos dias da semana anterior ao 23º Domingo do Tempo Comum, procurar
meditar a Palavra de Deus deste domingo. Meditá-la pessoalmente, uma leitura em
cada dia, por exemplo… Escolher um dia da semana para a meditação comunitária
da Palavra: num grupo da paróquia, num grupo de padres, num grupo de movimentos
eclesiais, numa comunidade religiosa… Aproveitar, sobretudo, a semana para
viver em pleno a Palavra de Deus.
2. BILHETE DE EVANGELHO.
Marcos é um verdadeiro encenador. Ele faz a decoração em pleno território de
Decápole, habitado pelos pagãos. Coloca em primeiro plano da cena duas
personagens: Jesus e o surdo-mudo, enquanto a multidão fica em segundo plano. O
actor principal, Jesus, só pronuncia uma palavra: “Effata!” (Abre-te) e faz
três gestos: mete o dedo nos ouvidos do doente, toca-lhe a língua com a sua
própria saliva e levanta os olhos para o céu. A segunda personagem deixa-se
levar, pois põe-se a falar correctamente. Jesus vira-se para a multidão,
pedindo-lhe para não dizer nada do que se tinha passado. A cena termina com um
coro unânime: “Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os
mudos falem”. E nós, onde nos vamos situar? Nós somos este surdo-mudo doente,
recusando por vezes escutar a Palavra de Deus e não ousando anunciá-la. Então,
Jesus dirige-Se a nós, faz-nos sinal, pede-nos para nos abrirmos nós mesmos,
como tinha pedido ao paralítico para se levantar. Cada Eucaristia é uma
passagem de Cristo ressuscitado: deixemo-nos tocar por Ele para nos abrirmos…
3. À ESCUTA DA PALAVRA.
“Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa.
Como diz o dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não o fique
mais. Óbvio, mas cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham
consciência de serem o Povo eleito por Deus, posto aparte pelos outros povos.
Nem pensar misturar-se aos outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros! E eis
que Jesus faz o contrário. Sai das fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos,
fazendo mesmo milagres em seu favor. É o mundo ao contrário! Ele não teme mesmo
ter contacto físico com este surdo-mudo, impuro aos olhos dos Judeus fiéis.
Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que Se abre aos estrangeiros,
tornando-Se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente, é muito arriscado,
ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos estrangeiros.
Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando outras
maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se à
interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer
sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos
meus irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar
de Deus sobre os outros. A um visitante que lhe perguntava para que servia um
concílio, João XXIII respondeu: “ o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é
tirar a poeira e varrer a casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos:
Vinde e vede, aqui é a casa do bom Deus!” Na manhã de Páscoa, já houve uma
abertura, quando a pedra que fechava o túmulo de Jesus foi retirada. E antes
ainda, tinha havido já uma abertura, quando o soldado romano tinha aberto o
lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas aberturas nunca foram fechadas.
Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água e o sangue que brotam para
que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!” “Abre-te!”
4. PARA A SEMANA QUE SE SEGUE…
Um tempo de meditação… Para nos impregnarmos daquilo que o Senhor deseja para
nós, tomemos o tempo para rezar e meditar estas simples palavras de Cristo:
“Abre-te”. O Salmo 145 pode ajudar-nos. Por este tempo de meditação, ou com a
ajuda de um acompanhador espiritual, procuremos descobrir o que impede ainda em
nós a verdadeira libertação oferecida pelo Senhor.
UNIDOS PELA PALAVRA DE DEUS
PROPOSTA PARA
ESCUTAR, PARTILHAR, VIVER E ANUNCIAR A PALAVRA NAS COMUNIDADES DEHONIANAS
Grupo Dinamizador:
P. Joaquim Garrido, P. Manuel Barbosa, P. José Ornelas Carvalho
Província Portuguesa dos Sacerdotes do Coração de Jesus (Dehonianos)
Rua Cidade de Tete, 10 – 1800-129 LISBOA – Portugal
Tel. 218540900 – Fax: 218540909
portugal@dehonianos.org – www.dehonianos.org